domingo, 7 de agosto de 2011

Introdução do livro Quando Ronca o meu Rancor

“Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. A frase atribuída a William Shakespeare apresenta com muita propriedade a ideia de que o rancor, a mágoa, o ressentimento e afins são sentimentos autodegenerativos. O aforismo do dramaturgo bretão justifica a culpa e a condenação sofridas por muitos rancorosos já que a lógica senso-comum se desdobra da seguinte maneira: O ressentimento é algo que me traz prejuízos. Sendo assim, devo fazer de tudo para me livrar dele, pois caso eu venha contrair uma doença degenerativa, todos irão me culpar por ser o causador de minha própria desgraça. Além disso, caso eu confirme minhas mágoas e negue o perdão, estarei estigmatizado por ir de encontro a uma das mais elementares ideias cristãs. Por tudo isso, mesmo que eu não consiga me libertar do rancor, é melhor escondê-lo.
Saiamos da superfície para descer até a escura masmorra. Dentre os sentimentos verbalizados e já identificados por alguma etiqueta que chamamos de “palavra”, o rancor talvez seja o menos valido. É isso que constato ao me deparar com o fato de que raras pessoas se assumam rancorosas. Ainda que o sejam, preferem esconder o ressentimento como se ele fosse um motivo para se envergonhar. Sou diferente. Assumo meu rancor. Discuto demoradamente sobre ele. Faço isso porque o rancor é também definido como ódio profundo não expresso, como uma besta enjaulada em nosso peito que ruge pela liberdade. Sendo assim, exibir o rançoso sentimento é uma forma terapêutica de mitigá-lo, de tornar mais serena a fera reclusa.
Creio que o rancoroso deve se livrar também do estigma da culpa. O algoz que aplica 13 chibatadas em um prisioneiro fatalmente irá se esquecer do ato cruel. Contudo, aquele que teve o couro rasgado pelos golpes do chicote carrega o queloide na alma por muitos anos. Em suma, quem bate costuma esquecer; já quem apanha jamais esquece. O pesar talvez tenha origem na permissividade que se teve diante do agressor. Não nos perdoamos e nos culpamos por termos permitido sermos sacaneados uma ou duzentas vezes. Não se sinta culpado. Não sinta remorso. Não sinta remordimento. Foi o outro que não permitiu que você gostasse dele.
Perdoar não significa se libertar dos executores. Imagine um sujeito que pisa em seu pé. Ele se desculpa, mas dá a mesma pisadela em seu dedão calejado sempre que tem oportunidade. Nesse caso, perdoar é deixar-se humilhar, é permitir ser maltratado. Então qual solução para impedir que o rancor seja um sentimento nocivo que carcome o espírito e faz brotar um tumor nas entranhas? Muito embora eu não seja um guru da autoajuda, creio que a solução seja condenar os desafetos ao exílio. Devemos afastar de nossa existência todo aquele que nos faz um recorrente mal. Mantê-los por perto na esperança de aplicar um revés ou que se tornem benfazejos nada mais é do que aliviar ventre na latrina e ficar encarando os dejetos. A matéria fecal e o passado não têm serventia. Já saíram de você; já passaram. Todavia é preciso coragem, pois a tão cultuada gratidão, os laços de parentesco, a sede por vingança e arroubos de culpa são grilhões que muitas vezes prendem as vítimas aos seus algozes. É necessária a tenacidade de um mártir para escapar do claustro.
Os rancorosos que figuram nesses esboços narrativos são personagens que encarnam o nefasto sentimento de inúmeras maneiras. Todos eles estão aprisionados nos agravos do passado. Eles preferem se abraçar aos seus rancores (como diria João Antônio) porque é a único bem que lhes resta. Exilam-se na sombria ilha dos ressentidos. Apesar de habitarem no mundo da ficção, as figuras que aqui aparecem são mais verdadeiras do que seus pares do mundo dito real. Tais personagens não se preocupam em abafar o ronco do rancor.  

domingo, 3 de julho de 2011

Meu Querido Canalha*

Canalha. Tu finges ser um andrajoso que mendiga afeto quando na verdade não passa de um cigano que andarilha pelo corpo das fêmeas em busca de diversão. Brincas, brincas e, depois que te esbaldas, livra-te delas como se fossem um brinquedo velho. Guardas lembranças diminutas para montar teu interminável caleidoscópio do universo feminino.
Cafifa. Semeias ilusões, prometes sem garantir. Fazes com que as moças hipotequem toda a carga afetiva e em troca oferece moeda sentimental putrefata. O produto desse escambo infame é a dor alheia. Tu te vais com a lástima de nada poder edificar e deixas apenas um alicerce onde estão depositados escombros.
Calhorda. Não largas o osso. Não dispensas mulher alguma. São elas que, por força maior, abandonam-te. Levam para longe a verborragia reclamona e a culpa de terem errado. O mesmo dedo dedo indicador de extraída cutícula e unha impecável que te aponta a vileza é o dedo podre que indica a ti como melhor opção.
Cafajeste. Desbravas os corações com a mesma fúria que penetras os corpos. Porém, não passas da fase inicial. Abandonas tudo no começo para deixá-las com o agônico sabor do "como seria?". 
Ainda assim, meu canalha, eu te amo. Porque essa voz que te fala também é tua e essa tua condenada inquietude é igual parte de mim
*Meu querido canalha é título de uma antologia de contos (que nunca li) sobre cafajestes amorosos.

sábado, 7 de maio de 2011

Pé da Boba

Conselho de classe. Se tomássemos ao pé da letra cada palavra que compõe o título dado à reunião, teríamos uma resolução conjunta sobre os assuntos concernentes à sala de aula. Porém, a reunião que sempre nos rouba um bom naco do fim de semana não resolve nada e em nada ter a ver com os elementos que formam o corpo docente. Como já sei o que me espera naquele auditório, tomo um mandrix acompanhado de uma dose generosa de uísque cowboy. Escovo os dentes com a paciência de Jó. Passo a fita dentifrícia em todas as frestas. Sinto os gosto inapetente da limpeza bucal. Óculos Ray-Ban e perfume importado. Barba loira por fazer pra ficar com cara de sábado de sol.
O professorado reunido. Ela entra com a diretora gorducha. Propõe mais uma daquelas dinâmicas ridículas que mais constrange do que divertide. Ao final daquela brincadeira medonha, segue um palavrório com frases pré-moldadas. Educação é amor, educação é troca afetiva, seduzir o aluno, ser tolerante... E escola cobra a bagatela de mil e duzentos reais por cabeça... Sento próximo ao professor Calebe, velho depravado. Em cochicho, comenta os atributos glúteos e mamários das professoras. Ouço tudo em silêncio.
Lança-se o carômetro em data show. Essa vai, esse não vai. Esse tem probleminha. Aquela foi violentada pelo tio-avô cadeirante. Aquele é bom e beltrano também. Vão rotulando as pessoas com a etiqueta aluno. A diretora quer empurrar todo mundo para o ano letivo seguinte. Os professores muito compromissados se enervam: Passa comigo, não! Passa comigo, não!
A boba é posuda. Vestida com uma elegância que expõe a beleza em bandeja de prata. Quase tudo coberto. Só revela o necessário. Os pés. Pés 35. Um 35 tão formoso, tão harmonioso que passa a número redondo. Pezinhos ricos em curvas. Dedos esculpidos que exibem unhas cuidadosamente pintadas em sintonia cromática com as sandálias. Ela me chama. Observa a quantidade incomum de notas vermelhas. Vermelho é o sangue, vermelha é paixão, vermelha é essa boca que me fala, vermelho é quase a cor desse esmalte. Diz que eu preciso tentar uma aproximação com os alunos porque são turmas com defict de aprendizagem. Sugere estratégias. Concordo com tudo. Chuparia cada um daqueles dedos como se fosse o mais fino acepipe. Aqueles dedinhos me fariam salivar, implorar por pisadelas em um português infâme: Pisa neu! Ela descruza as pernas. Eu remexo nos diários e faço o movimento nervoso de ir e vir com a ponta da caneta retrátil. Ela cita os teóricos da educação. Uma professorinha encorujada resmunga que assim não vai dar pé. Dá pé, sim. A boba se arvora no discurso da educação libertadora. Lá do alto ela é intocável, não entra em sala. Eu só olho pra baixo. Encaro aquelas extremidades que sustentam a boneca esnobe. Imagino aqueles pés maculados de lama, imundos. Eu os lavaria carinhosamente para depois secá-los com uma toalha branca e felpuda. Ela se levanta, passa para trás das bancadas para melhor explicar os gráficos expostos pelo data show. Os pés desaparecem. Vou ao fundo da sala para buscar um cafezinho. A professora de Artes mais sem graça que boneco palito diz gostar do meu perfume. Sorrio agradecido. 
Começam a distribuição das avaliações do corpo docente. Apesar do desempenho medíocre de meus alunos, sou bem avaliado. Não entendo o porquê. Boa parte dos docentes fica se remexendo de raiva, balançando a cabeça em discordância. Fim da reunião. Mestre Calebe chega até mim. Diz que tem regressões quando olha o decote da professora de Literatura. Viaja até os seus imemoriais anos lactentes. Feliz o rebento que mamará naquelas tetas!, profetiza. Convida para um chope  com os colegas. Dou-lhe dois tapinhas no ombro e agradeço:
"Não bebo, professor."

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Delator

"Professor, Se senhor tiver a curiosidade de um dia buscar no dicionário o significado da palavra delação, poderá encontrar como sinônimo denúncia. Desta sinonímia discordo totalmente. Os senhores Aurélio e Houaiss deveriam ler menos, pesquisar menos e viver mais. Assim entenderiam que as palavras vivem em seus usos e não estanques na ordem alfabética do pai dos burros."

"Sei que denúncia não é o mesmo que delação. Denunciamos algo que sabemos ser ilegal, uma atitude nociva à sociedade ou a um indivíduo. Para denunciar, não é necessário que estejamos infiltrados entre criminosos e corruptos. Denunciamos à distância... Já a delação tem algo de espúrio e antiético. O delator muitas vezes se disfarça de criminoso para buscar provas e testemunhar contra os infratores. Ou então delata porque é contrariado, porque não tira todas as vantagens do esquema. A delação é tão baixa que para ela há inúmeros outros termos que lhe servem de tabuísmos. E tais expressões a ela relacionadas tornam seu significado ainda mais denso. Alcaguetagem, deduragem, dedo de gesso, X9, dedo de seta, dedo-duro..."

"Muito bem, Professor. Vejo que o senhor tem a total noção de que se tratam de conceitos distintos. Sendo assim, haverá de convir que o aluno em questão fez uma denúncia e não uma delação."

"Discordo. Devem ser levados em conta uma série de fatores. Em primeiro lugar, o aluno "denuncista" tem comportamento nada exemplar. Boceja alto na hora da explicação, não faz nenhuma atividade individual e apenas assina o nome nos trabalhos em grupo. Conversa o tempo todo. Alvejou a professora de Artes Plásticas com uma borracha. Mata aula. Atende o celular em sala. Comete uma série muito sortida de indisciplinas. Em vez de se concentrar no execício, ficou me chamando por mímica e apontando com o lábio inferior para a aluna que estava no fim da sala."

"Os erros dele não corrigem o erro daquela jovem."

"Desenhar um coração com caneta marca-texto na parede é algo diminuto perto do rosário de problemas que  o aluno apresenta."

"Pichar é uma infração grave que deve ser punida com todo rigor!"

"Em segundo lugar, o que a aluna desenhou na parede nada tem de pichação. E por fim, o alcagueta só chamou minha atenção para isso porque sabia que seria por mim advertido. Apontou para a garota justo quando eu me aproximava de sua mesa. Fez isso para driblar minha atenção."

"Ok, professor. Contudo, o senhor não pode contestar a punição  que está prevista no estatuto interno desta escola. Somos uma escola pública modelar, não podemos nos igualar as demais escolas onde tudo de ruim acontece."

"Ficamos rebaixados ao mesmo nível das demais escolas quando queremos punir o que está na superfície, sem buscar corrigir aquilo que não é aparente e que, por não aparecer, é muito mais daninho..."

"Onde o senhor quer chegar com isso?"

"Ao seguinte ponto: Não é justo "punir de maneira exemplar" uma boa aluna que desenhou um coraçãozinho na parede usando uma caneta marca-texto ainda mais quando ela foi dedurada pelo pior aluno da sala que quis apenas desviar o foco. São os piores alunos que deduram. Eles sentem inveja e têm uma autoestima rastejante. Deduram o colega porque não conseguem aprender e buscam nisso uma maneira de sabotar aulas e se sentirem menos maus alunos. E convenhamos: os verdadeiros pichadores fazem isso nas paredes dos banheiros longe da vista de todos. Infligir castigo a essa menina equivale a premiar o delator."

"Muito bem, Professor. Levarei em consideração essa conversa. Pode ir. E, por favor, peça para os alunos entrarem ."

***
"A senhora sabe quanto dinheiro custa pintar toda essa escola? Por acaso a senhora tem por hábito desenhar corações na parede de sua casa? Trate de pegar uma esponja e sabão com o pessoal dos serviços gerais porque a senhora vai limpar a sujeira que fez na vista de todos. Depois volte aqui para tratarmos da sua advertência."

"Quanto ao senhor, espero que melhore suas notas e seu comportamento. Faz muito bem em zelar pela a limpeza da escola."


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bom de Briga

A blindagem do fraco é prostrar-se na inferioridade. É fazer de sua fraqueza um passe-livre para transitar no território fortificado. É cômodo ser o fraco,  o vitimado, o bullyinado. Difícil é invadir um espaço já demarcado. Mas, quando o fazemos, ganhamos, no mínimo, respeito.
Naquela escolinha rural, o forte era Dilsinho. Viu em mim o recém-chegado que teria de pagar o preço por ser forasteiro, por chiar na pronúncia dos "s" finais. No caminho para a sala, gritou: "carioca da bunda choca!" Revidei: "Choca é a galinha da tua mãe!" Dilsinho partiu em minha direção muito disposto. Com a musculatura trabalhada pela lavoura, acertou-me muitos cachaços que eu revidei com menor eficiência. Em meu primeiro dia de aula, adentrei a sala com a cara vermelha e beiço rachado.
A professora, a quem chamávamos de Dona Santa, era uma senhora obesa e gritona. Usava de três métodos para punir os alunos bagunceiros e com dificuldades de aprendizagem: cadernadas, beliscões e saraivadas com uma peça de metal que usava para apontar no quadro. Meu bom aproveitamento e discrição retardaram as primeiras agressões de Dona Santa. Até que um dia ela me perguntou: "O que comeu no café?" "Pão e café-com-leite.", respondi. Ela gritou: "Se diz leite com café!" "Qual a diferença?" Para deleite de muitos, minha pergunta foi motivo suficiente para duas cadernadas no coco.
Minha inteligência de menino alfabetizado pela vó causava inveja nos colegas. Dilsinho e sua patota se aprumaram na hora da merenda. Eu tinha um caneca de mingau quente à mão. Tratei de atirar o conteúdo nas fuças de meu inimigo. Os comparsas estancaram surpresos. Aproveitei a paralisia geral e cobri Dilsinho de chutes e socos. Formou-se plateia. Fui suspenso. A partir de então ganhei seguidores e tomei conhecimento de meu poder.
Minha força não era física obviamente. Meus pais tinham uma condição financeira superior se comparada a dos habitantes da região. Luz elétrica, rádio e televisão. Convidava os colegas para irem à minha casa brincar. No final da tarde, minha mãe servia guloseimas que as crianças devoravam sem cerimônia. A farta hospitalidade ajudou a formar meu grupo de amigos: Os irmãos Angeli e Erli, André Boi e Fimose. Este último era assim chamado porque sua cabeça era colada entre os ombros. Pescoço ali parecia não existir. Apesar do apelido, Fimose não era por nós achincalhado; era digno de uma nesga de sol.
Dilsinho e seu bando passaram a me respeitar e aquela rixa foi sublimada. Medíamos força nas partidas de futebol, no bafo, na disputa de gudes. Volta e meia a gente se topava de atiradeira na mão à caça de passarinho. Mal nos falávamos.
Quando iniciei o terceiro ano ginasial, tinha minha popularidade elevada às alturas. Bom de bola, inteligente, boa praça e uma marrinha caricata. A combinação me rendeu o apelido óbvio: carioca. Com minha identidade formada, espaço conquistado e amigos, ir para escola tornara-se um prazer. 
Satisfação maior ainda encontraria  fora da escola. Marciana, aluna repetente, com considerável devassagem idade/série, trabalhava feito homem na propriedade de sua família. Seu Pai, Seu Inácio, só bebia e reclamava da doença que lhe comeu a perna. A mãe cuidava do caçula e fazia doces para pôr à venda. Marciana tinha de fazer um trabalho alienígena para as mulheres locais. O pasto por onde tocava o gado era próximo à minha casa. Com pena, a mãe mandou que eu levasse um pedaço de bolo para ela. Quando ao curral cheguei pude bem ver suas costas sardentas enquanto ela separava o bezerro da vaca. A cebeleira desgrenhada, o rosto todo marcado por sardas, o corpo insinuante coberto por um vestido surrado exerceram sobre mim um certo fascínio. "A mãe mandou pra tu." "Ocê subiu  até aqui só pra trazê esse bolo pra eu?" "É".
Desde então, nossos encontros pelo pasto se tornaram regulares. Na escola, o contato se restringia a olhares. Não demorou mês, Marciana rolou comigo pelas moitas de capim braquiária. Tirava a roupa de baixo e levantava a saia. Exibia o sexo coberto pela relva castanha. Nossas tardes de inverno se acabavam  naquele primitivo folguedo. A mãe já atinada, deixou de enviar os quitutes. E constatando que eu voltava pra casa com a roupa pejada de carrapicho e o corpo castigado pelos carrapatos, tratou de reclamar com o Pai. O Pai se riu: "Êta ferro! Deixa o menino! Isso é sanha de garrote atrás de novilha mojando!"  Estava mesmo encegueirado. Neguei até convite de férias no Rio.
Na escola, minha postura mudou. Menos piadista, mais sisudo. Agarrei no pescoço de André Boi que tentou levantar a saia de Marciana na fila da merenda. Nunca mais o convidei para minha casa. Corria para casa pensando naquele corpo marcado de sarda e carrapato. 
Dilsinho observou que eu estava vulnerável. Descobriu minha Kriptonita. "Ocê tá de namoro com a vaca malhada, heim?" Nem respondi. Saímos no braço. Minha ira era tanta que compensou minha falta de robustez. Nova suspensão, dessa vez, para ambos.
Depois do incidente, o boato se espalhou de maneira contínua como o sangue que minava de meu nariz e se espalhava lentamente pelo branco da camisa. Marciana passou a se esquivar. Passou a subir para o curral acompanhada do irmão menor. Recusou a broa de fubá que roubei da despensa. Senti a dor da perda. A dor maior, o desgosto mais amargo eu senti quando flagrei Marciana subir na garupa da bicicleta de Dilsinho na hora da saída. Caí em tristeza profunda. Fiquei uma semana sem ir à escola, vagando pelas trilhas e pastagens incertas. A mãe percebia minha depressão, era   toda atenção para comigo e comentou que meu corpo estava livre de parasitas.


segunda-feira, 28 de março de 2011

Prefácio do livro Desenrolo

No seu livro de estréia Viddal de Souza faz referência a aspectos marcantes da literatura brasileira.
Mas usa um tom contrastante, como não podia deixar de ser. Já o seu Magistrício Ateneu se passa na era do elogio do achincalhe, da piadística, da luta entre o deboche e o bom humor, pois o professor Azedo precisava mais do que da autoridade que o cargo e a função lhe asseguravam para estabelecer uma relação eficaz entre ele e os alunos de uma classe como tantas outras que ocupam as salas de aula nos anos de 1990, 2000 e assim por diante.
Tomando da pena, nosso estreante autor moderniza o assim chamado contexto. Sai do sério e contra-ataca com as mesmas armas. A crítica feroz contrasta com a elegante reação dos professores da tradição literária brasileira. Sem saudosismo e sem teoria, Viddal faz a sua narrativa, que debocha da frustração do mestre, do respeito antiquado e da teoria ineficaz.
Num cenário suburbano, cria com estilo um tipo de ironia que contrasta até mesmo com mestre Nelson Rodrigues, que foi o mais cruel crítico da hipocrisia da elite que torce o nariz para as chamadas camadas menos favorecidas. Realismo tratado finamente é o que teremos nestas páginas. Rodriguianamente, o professor sente-se um “um palhaço, um bufão maldito” e lembra dos seus sonolentos tempos acadêmicos em que professores antipáticos e sem carisma eram tolerados, desde que esnobassem e arrotassem saberes.
Nelson Rodrigues é revisitado no conto “De mãe pra filha”. Primeiramente na epígrafe, que lembra os momentos mais radicalmente pornográficos de Nelson. Em seguida na invasão da privacidade feminina, quando Viddal cria uma teoria que associa menstruação e banho frio matinal. É quase um desrespeito, que se torna delicioso nesses tempos de hipocrisia disfarçada de politicamente correto. E Vidal, por fim, confessa sua predileção pelo “dramaturgo do Leblon”.
Esse último conto longo, rico em personagens – alguns dignos de Rubem Fonseca, pelas suas características físicas grotescas e pela crueldade que molda o enredo – foi deixado para o final, provavelmente, para ser deliciosamente degustado, como o pudim oferecido por Moema ao protagonista. Tudo gira em torno da obsessão do personagem principal pela prática da “preferência nacional”, ou seja, do sexo anal. As peripécias suburbanas se sucedem. A linguagem varia hipocritamente entre descrições quase médicas da anatomia anal feminina e a mais pura exposição do que os homens menos refinados da sociedade carioca fantasiam a respeito das fêmeas que pretendem possuir ou que possuem.
Ao final da leitura, afora as influências rodriguianas e fonsequianas, fica no leitor a sensação de ter assistido ao desenrolar das vidas suburbanas. Ou das dramáticas mortes suburbanas, ali, na rua, com plástico preto pra cobrir o presunto, velas acesas e público.
Viddal é desses narradores que quase colocam suas histórias numa tela real de cinema. No caso dele, cinema suburbano, naturalmente.
Ulysses Maciel

Contracapa do livro Desenrolo

O livro Desenrolo é um punhado de histórias que vai levar o leitor à lona. O Manual de Boas Maneiras para Meninas, de Pierre Louÿs, encontra-se na novela de “Mãe para Filha” em que o tom mordaz, sarcástico e ácido modula as ações das personagens. A matreirice à espreita no conto-título deste volume faz nos perguntar ao final da leitura: “Tem desenrolo?”. A vida páginas afora afirma que sim. Mas qual o preço? Este pode ser medido, pesado e tarifado ao longo dos contos da valente ficção que se dispõe nesse livro.
Mariel Reis

quarta-feira, 23 de março de 2011

Volte Sempre

Ao deixar um emprego, há quem diga: "Nunca se deve fechar uma porta."
Então, eu incentivo: "Isso. Escancare os portais do inferno para que o demônio anfitrião torne a convidá-lo para um "open hell".

terça-feira, 22 de março de 2011

Vida Nanica

Sabe a jovem que ingressa numa grande empresa para ocupar a função de servir cafezinho e espanar a mesa do chefe? Essa moça, mesmo sendo uma anta, consegue galgar postos mais importantes. Ela não possui mérito algum, faz do corpo moeda de troca. Sem qualquer traço de escrúpulo, chega ao cargo de secretária executiva, praticando a versão mais vil do alpinismo social. Abrindo as pernas pra um e outro, sabotando as concorrentes diretas, fazendo da mentira e da falsidade regras para sua existência. Tal tipo de gente nunca deixa de olhar para trás, segue de costas. Sentindo pavor de perder a máscara, acha que todos são capazes de pôr em prática as mesmas vilezas. Carregando o fardo do ressentimento e da culpa, tratam mal os subalternos e adulam os superiores. Ruminam fel.
Sei bem como é. Meu negócio teve início no Cine Regência - cinema pornô. Chamarisco de pederastas assumidos e não declarados. Cobrava vinte pratas por uma chupada (chupada em mim, pois veado não sou). Enquanto o incauto felador se satisfazia, meu companheiro de trabalho tratava de furtar bolsa, mochila, pacote ou qualquer objeto que fosse deixado no banco ao lado. O nome do comparsa era Golias. Ele era anão. Desses anões cabeçudos, de membros tortos e andar cambaleante. A estatura diminuta era aliada nessas horas. 
Passados uns meses, começamos atuar no centro da cidade. Num esquema semelhante. A vítima era apanhada no Cine Íris. Em vez de furto, anunciávamos assalto. Havia pouca resistência. Nenhum pai de família ia alegar que fora assaltado por um garoto de programa com um anão à tira-colo. Com economia e sacrifício, fizemos um investimento maior. Partimos pra zona sul. Tendo um público-alvo mais seleto. Senhoras solitárias, viúvas, ninfomaníacas, rejeitadas. Mulheres que, com ou sem motivo, aventuravam-se em um programa comigo. Cem pratas. Programa completo. Tive de me empanturrar de bramil pra encarar velha coroca de boceta mumificada... De comparsa, Golias passou a empresário. O cara não dormia. Atendendo telefonemas, cuidando da minha alimentação, do vestuário... Ele trabalhava muito. Mas eu ficava sempre com a impressão de que trabalhava pra ele.
A rede de contatos aumentou consideravelmente. E os negócios ganharam outras dimensões. A faísca da ilegalidade comum à prostituição foi incendiária. Ingressamos na empresa de tráfico de mulheres. Eu ocupava a base da pirâmide. Abordava a fêmea, cortejava, ganhava a confiança, pagava de pretendente. O segredo da coisa era não falar de sexo nos quatro primeiros encontros. O mulherio apavorava. Ficava curioso e instigado. O batráquio aqui ganhava formas de príncipe encantado. Depois de levar a moça pra cama uma, duas vezes, a gente acionava os caras. A caminho do motel, meu carro era abordado, sequestravam a mercadoria. Esse lucrativo esquema durou bem uns anos. Golias se afastou de mim. Só nos falávamos por telefone. O anãozinho estava mais perto do topo do que eu. Gerenciava. Muita inculcação, mas a gaita chegava até mim. Dólar, euro, joia. Mudei pra uma cobertura na Barra da Tijuca e passei a me dar ao luxo de fazer sexo amador. 
De frente pro mar não conseguia mirar o horizonte. A carranca do passado me hipnotizara. Ruminava as frases de meu antigo comparsa: "Anão não é gente pra sociedade. Pra esse povo, anão não faz aniversário, não morre, não toma condução. A gente só serve pra figurar em circo, em peça infantil. Mas comigo não. eu vou ser grande. Vou subir. Vou ficar famoso feito o Nelson Ned..." Tudo isso dito no pico da embriaguez, quando nada é  levado muito a sério. 
A firma quebrou quando menos esperava. Minha prisão foi declarada no momento em que pegava na mão da minha vítima de número 33. Na delegacia dos federais, liguei pro Golias: 
"Cara, me laçaram. Fodeu!"
"Eu te conheço?"
"Porra, Golias! Preciso de um advogado!"
"Eu te conheço?"
"Eu vou jogar a merda no ventilador, seu filho da puta!"
"Se mencionar o nome de pessoas de bem, tu vai fazer programa como  indigente no cemitério do Caju."
...

Peguei uma etapa de dezessete anos por lenocínio e associação ao tráfico de mulheres. De dentro do presídio, soube que o anão abriu sociedade em uma produtora de filmes pornográficos. Pagou minha proteção e advogado. Com míseros 1,37m, Golias alcançou seu lugar ao sol. Minha cabeça lhe serviu de degrau nessa escalada.



segunda-feira, 21 de março de 2011

Bola nas costas

Bem me lembro do personagem que o ator Osmar Prado representava em uma antiga série de TV. O falastrão caixeiro-viajante seu Quequé. Mantinha uma tríplice e sólida poligamia. Era provedor de três famílias. 
Eu, em certa medida, sofro do "quequeísmo", gosto de estabelecer vínculos sexo-afetivos com diferentes mulheres. Nada muito sólido; tudo com um grau médio de comprometimento. Só não conto bravata. Ouço uma pá fanfarronices dos colegas mas guardo meus feitos no cofre do silêncio; são o meu tesouro. A profissão ajuda. Ser motorista de táxi permite que a gente esteja em qualquer lugar a qualquer hora do dia. As mulheres passam uma temporada muito ligadas a mim. Aos poucos, percebem que investiram sentimento em moeda  podre e, por si próprias, tratam de me abandonar. Mas não sem antes fazer algum escândalo, um apelo final. Colecionar essas conquistas me apraz. Jogo em roleta viciada. Busco nas mulheres diferenças que se convertem em equivalência. Busco distinções anatômicas e ignoro as de caráter e personalidade. Assim eu sou. Quer dizer, assim deixei de ser quando me deparei com ela.
Entornava uma cerveja num bairro da baixada quando uma normalista entrou. Pediu uma coca-cola. De imediato,  manjei aquelas pernas descobertas pela saia azul-marinho. Uns olhões castanhos. Toda posuda. Aquela sisudez só fazia aumentar o encanto. Levei o copo à boca pra não falar gracinha...
Mas foi ela que deu brecha quando me pediu fogo. Mandei jogar fora aquele cigarrinho paraguaio e ofereci para seus lábios um raro prazer. Fumamos e nos apresentamos. Jareceruba, ela vivia num buraco chamado Jaceruba. Não rompi com meus outros cachos. Porém, aquela novinha balançou minhas estruturas. Inexperiente, mas topava tudo. Garota com disposição de sobra. Quem disse que sexo não apaixona? Aquele corpo esguio, aquele cheiro de perfume barato. A maneira de maquiar muito adolescente. Os erros crassos de português... 
Fui aumentando a carga afetiva. Pagava almoço. Dava dinheiro pro salão. Comprava livro e os caralho. A corda foi esticando, foi ficando tensa. Fui na casa da moça dar as caras. Levei uns troços pro lanche. Fazer uma presença, sabe? O casa era miserável. A necessidade da mãe e das cinco irmãs que lá viviam era tanta que nem senti cheiro de cafezinho. A gente adora um drama pra justificar nosso apego. A garota jaceruba era um drama ambulante e me prontifiquei a salvá-la. Comecei a estudar a possibilidade de morar junto, de bancar a garota. Na mesma época, ela me veio com o reclame ginecológico. Levei ao médico. Nada sério. Catipopeia que dá em mulher. Tive de gastar uma gaita. Tudo seguia o curso da previsibilidade quando fui surpreendido pelo lançamento inapelável do destino. A cabritinha me deu balão. Fui até a pocilga em que ela habitava tomar satisfações. Ouvi da boca materna que ela tinha viajado, que se não estava comigo, estava com o outro. Tudo ruiu. Entre juras de amor, ela se escusou. Resgatei o o afeto investido pra salvar minha autoestima. Não queria perder a foda. Ela regateou, dizia merecer mais que isso porque puta não era.
Ainda hoje topamos. Aquela boca, de onde sorvi beijos, erros gramaticais e muito prazer, calou. Daqules lábios que filaram meus cigarros não ouvi sequer bom dia.

terça-feira, 15 de março de 2011

Audácia do bofe

"Essas bichas... Essas aberrações afeminadas ficam tudo doidas quando vem chegando o carnaval. Bando de desavergonhados! Faltam com respeito a todo mundo e ficam querendo tirar a rapaziada do bom caminho. Se meu garoto se bandear pra esse lado, eu mato ou deserdo. Andou ele com um papo de fazer faculdade de  letras porque gostava de poesia. Coisa de veado! Não suporto isso. Querem inverter a situação... Quando essa fauna faz sinal pro meu táxi, passo direto. Se pudesse atropelava."
Salomão se entretinha em seu monólogo que interrompia cada vez que levava o copo de cerveja à boca molhando o bigode robusto que fazia remexer como se taturana fosse. O garçom debruçado no balcão parecia prestar atenção.
"Essa boate nova emporcalhou ainda mais o nosso bairro. Onde já se viu uma casa para chamariscar esse bando de pederastas?! É praticamente um incentivo a veadagem!"
Entrou uma bichinha no bar. Dessas bibas bem floridas. Salomão fechou a cara. Viu que a franga usava tamancos e tinha pernas mais lisas que as de sua esposa. A a bermuda jeans cobria uma bunda que lembrava a de uma mulher. Mirou a cara do sujeitinho. Maquiado, boca pintada.
"Um maço desse aqui, please.", solicitou o invertido.
"Não tem vergonha, garoto?", perguntou Salomão.
"Ai, tio... Com você me olhando assim, fico encabulada. Pago pau pra esse teu bigodão de Freddy Mercury!"
Saiu em passinhos curtos e saltitantes. Salomão estava numa sinuca. Tinha que reagir pra não ficar mal falado no testemunho do balconista. Pôs uma nota de dez sob o copo e saiu no encalço da figurinha andrógina. "Vou  dar uma lição naquele safado!"
Olhando pra um lado e pra outro, emparelhou com o sujeitinho:
"Tem família, garoto?"
"Vai me adotar?"
"É de maior?"
"Dezenove ânus..."
"Vamos no meu táxi dar uma volta que te faço um agrado."
"Vai me pagar quanto, bofe?  Olha, não quero tomar uma beiça, heim?"
"Um galo na tua mão."
"Decidido, heim!? Para teu carro ali na esquina que vou levar esse cigarro pra dona e já volto."
Enquanto manobrava, pensava na melhor maneira de esfolar aquela bichinha. "Onde já se viu, me expor ao ridículo dentro do bar..." Mas antes havia de brincar primeiro. Porque  é homem quem come. Estacionou  no lugar combinado. Na calçada oposta, avistou o dito cujo que não estava sozinho. Guiava um numeroso grupo. Uma bicharada. Veado pra tudo quanto é gosto. Até traveco tinha. Salomão saiu do carro assustado, esbaforido. Correu ao porta-malas e se muniu da chave de roda.
"Olha, gentes: é esse o ursinho cheio de ofófi! Tá querendo me papar!"
Os transeuntes estancavam, curiosos. Cercado pelos baitolas, Salomão se limitou a sacudir a ferramenta e xingá-los do óbvio. Começaram a bater palmas e a cantar em ritmo de marchinha:

"Me pediu pra ver as horas,
Falei, são dez,

São dez e lá vai fumaça,
Achou graça e quis ver,
No meu Roscofe,
Audácia, do Bofe.

Audácia, do bofe,

O meu Roscofe,
É tão legal,
Dei azeite, pra ele,
Pois eu não sou esses bofes da Central"*

Salomão trancou-se e arrancou com o táxi decidido a mudar de ponto.


*"Audácia do Bofe", marchinha de carnaval de autoria desconhecida.

Casaca

"A alma descarrega suas paixões sobre objetos falsos, quando lhe faltam os verdadeiros" (Michel de Montaigne)


Em dia de clássico, minha presença no estádio era certa. Pouco importava quais escuderias iriam se degladiar. Saía de casa à paisana e vestia a camisa do time da vez no entorno do estádio. Me alocava mais próximo possível de alguma torcida organizada. E ali ficava. Decorava os cânticos, os gritos de ordem. Observava os tipos: torcedores profissionais, entusiastas, turistas, pais que levavam suas crias ao estádio pela primeira vez. Constatava que isso era universal. Em todas as torcidas, essas figuras se repetiam; apenas trajavam diferentes cores. E eu, do meu canto, nada sentia. Nenhuma comoção me alcançava. Não abria a boca nem mesmo para gritar gol. 
Meu pai era um doente. Um apaixonado. Contemporâneo à geração de Zico, meu velho acompanhou a sequência de conquistas de seu time, o que fez acentuar sua sandice. Esquecia o aniversário de casamento, mas lembrava do natalício do Galinho. Dominava de cor e salteado as escalações de todos os elencos que levantaram taças. Quando fiquei mais taludo, passei a acompanhá-lo aos estádios. Até que num dia de clássico topamos com a torcida rival. Mandaram meu pai tirar a minha camisa. Ele contestou. Um alvoroço começou a se formar. Uma pedrada lhe sobrou em cheio na cara . Caiu no chão emborcado. Enquanto se formava a poça de sangue, os inimigos arrancaram minha camisa. A pedrada lhe roubou a visão e o ódio me cegou. Com os olhos embotados para a paixão clubística, pude encarar a verdade: o que alejou meu pai foi o ressentimento que é o amálgama comum a todas as torcidas organizadas. Por isso, detesto todas.
Foi justo no dia do mesmo clássico que decidi matar minha sede de vingança. Fui para estádio. Assisti ao jogo naquele mesmo esquema. Muito na minha. Na hora do gol, me abraçaram, eu me deixei abraçar. Fixei a atenção num torcedor pançudo que tinha a cruz de cristo tatuada no braço. Seus movimentos eram exagerados. Na hora do intervalo, fui até o banheiro. Tirei o 38 que estava colado em meu peito com fita adesiva. A polícia só revista a cintura e os fundilhos do torcedor. Coloquei a arma no bolso do casaco e fui para o lugar de antes. Posicionei-me mais perto que pude do gorducho da colina. Assim que saiu o segundo tento, colei a arma em suas costas e apertei o gatilho duas vezes. Fugi em meio àquele alvoroço, àquela histeria.
Ao chegar em casa, a corriqueira cena: meu pai sentado na sala, segurando o radinho de pilhas. "Perdemos, filho. Me conta como foi. Acompanhar daqui nunca é a mesma coisa..."



quarta-feira, 9 de março de 2011

Quando ronca o meu rancor

Guardar ressentimento é como tomar veneno e  esperar que a outra pessoa morra.  (Willian Shakespeare)

"Bom... Tu é meu adevogado... Por conta disso, não vou me fazer de rogado e vou falar a verdade. Fui eu mermo, doutor. Fui eu mermo que peguei a cabrita à força. Eu vivia na paz e na tranquilidade. Só que o senhor sabe que o perigo mora perto. De perto a cobra dá o bote. Minha mulher andava cheia de onda, toda esquisitinha. Dor de cabeça, cólica e os cambau. Parecia passar metade do mês de chico. Todo dia era sinal vermelho. Aí cismei. Bem sei que mulher curte safadeza e se a tua não é safada contigo é porque tá se rebolando com outro macho. Não deu outra. A vadia tava de cacho com o primo casado que mora no barraco ao lado. A gente tinha amizade com o casal. Sempre respeitei a mulher do outro. Agora só porque tem grau de parentesco acha que pode usurfruir? Não, não. Minha cabeça não é árvore... Flagrei os dois grudados, debruçados - ela gostava dessa posição. Dei susto, meti o braço nos dois e abafei. Num fiz alarde pra não ganhar fama de boizão da favela. Engoli seco. a humilhação ficou entalada aqui, ó. Aquele ódio ficou roncando no meu peito. Eu parecia um gato asmático. A mulher botou a culpa no diabo e amarrou o umbigo na igreja. Mas quem ganhou o chifre do capeta fui eu. O primo comelão me baixava a cabeça como se eu fosse um superior. Mas deva pra ouvir o pensamento dele: "Tua mulher é boa!". Encucado, comecei a matutar a vingança. Demorei mais de ano pensando nisso dia e noite. Papar a mulher do primo ricardão pra dar o troco era uma... Mas a bicha era feia e era um doce de pessoa. Foi aí que lembrei da filha. Eles tinham uma filha. Dezesseis verões. Dessas mulatinhas roxinhas. Magra falsa com carne na bunda. Toquei a campanhia quando soube que a bichinha tava sozinha em casa. Me atendeu com  o prato na mão. Não falei nada. Não anunciei o estrupo. Ela ali de shortinho, risonha que só vendo. Eu dei dois metros de corda pra ela se enforcar. Ameaçou gritar, ficou se sacudindo. Eu apertando seu corpo, fazendo ela se cansar. No final, arranquei os pedaços de pano sem muita resistência. Que isso, doutor, não teve sopapo. Só teve força e ameaça. Isso já me alivia, né? Fiquei pra lá de meia hora. No final, a novinha olhava pro teto com os olhos estatelados. Deixei ela lá e fui pra casa. Tomei banho e jantei. Depois chegou o pai desonrado com a polícia. O resto o senhor já sabe. Mas me diz, doutor, qual a dor maior: a do marido corneado ou do pai que tem a filha violada?"

"A dor maior será aquela que o senhor irá sentir quando se tornar a messalina do xilindró."


sábado, 26 de fevereiro de 2011

Submundo da Bola

Toca a bola, Tabaco!


Sou um medíocre conformado. Não tenho o emprego dos sonhos. Minha mulher é uma desmiolada, evangélica recém-convertida. Minha filha única de dezessete anos já é descabaçada e está grávida do motorista do 678 – acho que essa merdalha deve ter deflorado minha filha no próprio ônibus, nos bancos de trás. Sorte ele não ser preto e nem torcedor do flamengo. Minha única alegria na vida é o futebol. O futebol real, não aquela invencionice que passa na TV. A agremiação pela qual eu jogo há doze anos, O Cascudo F.C. Ajudei a fundar esse time de bairro junto com os parceiros aqui da área. Nos inscrevemos nos campeonatos amadores locais e desde então, rodamos por muitos bairros do subúrbio, da zona oeste e visitamos comunidades. O “Casca” coleciona torneios, campeonatos e troféus de amistosos vários. Chegamos a ficar catorze meses invictos. Foi quando Peleca e Militão faziam a dupla de ataque, Mizinho e o maestro Tabaco inventavam no meio-campo, Marasmo, Lindomar, Hércules Carteiro e Boneco na zaga, o arqueiro paraguaio Buena se jogava pra cima das bolas, catava as difíceis e engolia galetos tremendos. Klinger e eu trancávamos o meio campo. Eu era a segunda estrela do time. Meu brilho é bastidor. Vigoroso, obstinado e disciplinado. Jogava todos os minutos e meu cuspe caía fininho no gramado, parecia sereno. Nunca fui habilidoso, nem rei da grande área, mas em matéria de catimba, procrastinação e capacidade de usar todos os detalhes a favor dos cascudos fizeram de mim capitão e ídolo. De cabeça rapada, barba crescida e monocelha eu aterrorizava os camisas 10 adversários. Batia assim na maciota, sem escandalizar. Tostões, pisadas, cotoveladas, xingamentos, dedadas, beliscões, cusparadas... Sempre usei de todos os recursos escusos para levar meu time à vitória. Nem coleciono expulsões. Sempre tratei o juiz com respeito e formalidade: “Que isso, seu juiz!” era o máximo da verbalização indignada. Depois danava a chorar no ouvido do árbitro, aquela lamúria catimbeira. Recordo uma vez que nosso time ganhava de um do River. Final do jogo, dominei uma bola no grande círculo e chegaram em mim. Mal o adversário encostou, me atirei ao solo. O juiz nada marcou, mas eu abracei a perseguida. Me chutaram, o juiz apitou e começou a porradaria. O time da casa deu no juiz, ganhei um amarelinho e o Cascudo ganhou o jogo. Outra ocasião a gente enfrentava o selecionado da Penha, uma galerinha carne-de-pescoço e tinha no ataque o afamado “Bizorrim”. “Bizorrim”: mineiro, baixote, atarracado, corajoso e muito íntimo da pelota. O sujeito não tinha posição fixa. Criava no meiúca e corria pra receber no ataque. Fiquei por conta de marcar o tal. Eu xinguei, belisquei, patolei. O cara impassível. Dominava a bola e partia pra cima de mim e dos outros, todo confiante; com a certeza de que se daria bem. Tomei uma meia-lua. Marasmo ganhou um chapéu por cima da cabeça grande. Um espetáculo vexatório. Foi quando eu me liguei num fator extra-campo. Sempre que o craque inimigo se aproximava da linha lateral, uma mulher, uma morena cheia de corpo, acenava, jogava beijo, e gritava “Vai, môzão!” Aquele era o calcanhar-de-         -aquiles do sujeitinho. Em vez de eu dizer pro cotoco de  pelé que a fêmea dele me abria o apetite, comecei a acenar e a jogar beijo para a moça. O cara se apercebeu do abuso e veio tomar satisfação. Fiz minha jogada: “Essa mulher é grande demais pro seu fusquinha, amigo! Olha o tamanho da minha língua, ó!”Botei meio palmo de língua pra fora e franzi o cenho, eu ia completar a ofensa com um “imagina o resto”, mas antes de eu guardar a língua dentro da boca, Bizorrim me acertou um botadão que quase arrancou meu paladar. Caí com a boca minando sangue. Empurra-empurra e o craque esquentadinho foi agarrado e levado pra fora do campo. Nunca mais jogamos na Penha. Fui jurado de morte. Com o passar dos anos, muitos deixaram o Casca. Alguns bem-sucederam e foram morar em bairros nobres. Outros pararam por conta de lesão. Alguns deixaram de ver sentido naquilo. Daquela geração de aço, só restaram eu e Tabaco. Hoje, Tabaco é banco. A maestria, a criatividade, a acuidade nos lançamentos longos tiveram um adversário inapelável: o excesso de peso. Tabaco, em redondas medidas, esbraveja fora do campo. Orientando a molecada. Mês passado, nos minutos derradeiros contra o Monarca do Méier, pênalti a nosso favor. Nem vi direito o lance, Pimpa tombou na área, o zagueiro e o goleiro dos caras danaram a reclamar. Cheguei junto de Pimpa que levava as mãos aos céus. “Fica caído aí.” Ganhando tempo, fiz sinal pro banco. Tabaco quis entrar só pra sentenciar a nossa vitória. A camisa 8 não escondia completamente as banhas. O juiz riu, o adversário fez piada. Tabaco, de boca aberta, de musculatura fria, colocou a esfera na cal. Eu comecei a reclamar de invasão de área no ouvido da autoridade. O juiz apitou. Vi o que o goleiro também viu. A corrida lenta em direção à bola. O toque com a esquerda bem embaixo. O guarda-metas desabando para o canto direito. E o coco girando e desenhando uma parábola invisível. Bem no meio do gol. O goleiro parecia uma tartaruga se debatendo inutilmente querendo virar de bruços enquanto assistia o fechamento do caixão. O veterano batendo palmas corria uma corridinha curta em direção ao campo amigo. A gente corria a passos largos pra abraçar Tabaco. Ele gritava: “À palenca, estilo Zidane, porra!”
Na terça me acharam num bar. Era o cabo eleitoral de um político de rabo preso com a milícia de Jacarepaguá. Disseram que era um jogo espetáculo para alavancar a campanha do dito cujo. Iam bancar a churrascada, me deram uma chuteira nova e deram a entender que o Casca tinha que fazer corpo-mole. Deixar o inimigo vencer. “Todo mundo vai sair ganhando”, dizia o assessor. Guardei aquelas palavras e ruminei a situação. Não seria a morte perder um joguinho amistoso. Além disso, eu já estou velho e meu romantismo está mais desbotado que minha camisa cinco “Todo mundo podia sair ganhando”... Mas agora Tabaco e o garoto Pimpa estão aqui. Vieram falar do tal jogo amistoso. Trouxeram a boa-nova que era pra ser uma surpresa pra mim. A partida contra a escória miliciana será a trecentésima vez que entro em campo pelo Cascudo F.C. Nem contabilizava isso. A galera da associação mandou confeccionar uma camisa especial com o número trezentos. Eles contaram também que vai ter uma bandeira com uma caricatura minha e com o dizer “Dinamarco, esse timéteu!”. Sacanagem dos putos. A gente começou a gargalhar. Eu ganho agora todo reconhecimento que me é negado pela família, pelo trabalho. Constato que meu amor por esse time é sólido, firme, permanente e impenetrável. Não tem chuteira, nem agrado que pague esses sorrisos, essa alegria coletiva que joga nossos problemas pessoais na várzea da amnésia. O time encardido do político mafioso vai ter de mim o que de melhor sei fazer. A catimba, a dissimulação, a sabotagem. Tudo isso bentratando a bola e de chuteira nova.

Contrato

Nossa relação não passa de um trato
Tu me arranhas
Tu te acanhas
E eu te bato.
Para que compromisso?
Se quando estamos distantes,
as lembranças são escassas
e o desejo se faz de omisso.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Festas Infantis

Uma pungente marca suburbana é a franca disposição para promover festejos infantis. As comemorações natalícias seguem anualmente até que menino se verta em rapazola e menina se torne ninfeta. Então eles dão um basta e ganham a soltura da rua. Fui convidado para o aniversário do filho de um antigo amigo. O quadro corriqueiro: Mais adultos que crianças, muita cerveja, frituras mil, músicas infantis que estupram nossos ouvidos e a molecada se divertindo no pula-pula e na piscina de bolas. Em meio ao agito a mãe gritava ao aniversariante: "Não corre, menino! Vai ficar todo sujo!" O moleque fantasiado de vasco já estava banhado de suor. O uniforme cruz-maltino apresentava manchas várias, fazendo lembrar o couro de um dálmata. 
Para aplacar a chateação, bebi muitos copos da cerveja snow, a cerveja que desce gelando. Suco de cevada da pior espécie esse. Nem gelado estava. Escumava feito baba de camelo quando derrubada no copo... No cume da onda etílica, comecei a ter terríveis visões: desceram um judas, um boneco gigante com a camisa rubro-negra com o nome "Zico" e o número 10. A molecada, incontrolável, partiu pra cima do galinho de pano na esperança de apanhar as guloseimas que serviam de estofo. As crianças, independente do time para qual torciam, divertiam-se deveras. Mas os adultos principiaram um desentendimento. Um sujeito gorducho, muito inflado pela soberba comum aos flamenguistas, começou a manifestar a megalomania. Ofendeu o brio do botafoguense mais próximo: "O melhor que o botinha conseguiu foi tomar o lugar de vice do vasco!" O saudoso dos tempos do Túlio Maravilha devolveu: "Molambo!". E feito crianças, os dois homens se atracaram, rolaram no chão para o desespero de suas esposas e demais convidados. Fui-me embora antes dos Parabéns. Esperar a partilha do bolo seria o mesmo que dividir a falta de bom-senso.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Peixe Frito

Vai, minha suburbana!
Me crava os dentes com vontade,
Faz da gordura o teu gloss
Que eu sou peixe frito:
Crocante por fora,
Tenro por dentro...
...repleto de espinhas.

A quem me indicar possa

Mumunhentos, mamateiros, useiros e vezeiros do recurso de prometer sem garantir. É assim que defino essa monta de instituições privadas que propõem processos seletivos meritocráticos para dar transparência às contratações. Tudo aparência; tudo ilusão. Um bom desempenho não tem validade se você não tiver um "padrinho" que abençoe teu currículo com a chancela do Q.I. E a referida sigla em nada tem a ver com inteligência...
Mas eu aprendi. Aprendi a ser político. Daqui pra frente vou azeitar minhas palavras e ações com a vaselina da hipocrisia, da adulação e da sedução rampeira. Darei razão ao seu discurso preconceituoso, compartilharei das suas sandices religiosas e darei ouvidos a todas as mentiras que me contar, desde que minha politicagem seja o adubo da  sua indicação.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Tira a máscara, Genevieve

Se para o carnaval queres ter o eu-histrião,
É bom que desças do pedestal e da arrogância abras mão.
Joga sobre mim o esguicho etílico de colombina louca
Na boca!
Na boca!
Ou te agarres aos teus petits chiens blasé.
E deixes que este folião
Desapareça na multidão.

Boleiro Ressentido

Quero um banho de sal grosso que me livre dos entraves
Porque meu talento não me livra do impedimento
Tampouco minha capacidade
Livra minhas bolas das traves.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Por onde andará Jaline Jah


 O bar e restaurante Mourinho lotava todas as noites de quarta. A clientela que se apertava nas mesinhas de quatro lugares e se punha de pé sobre a calçada não fazia seu hapy hour ali por causa do chope gelado, do Arak ou dos quitudes típicos que por lá eram servidos. Se apinhavam para assistir a uma curta apresentação de dança sobre o pequeno palco improvisado. Três artistas subiam no tablado em hora marcada e iniciavam o meneio oriental. Remexiam suas barrigas, braços e quadris promovendo um requebro mais sensual do que o sapateio das passistas, o remelexo mais afrodisíaco que o rebolado das funkeiras. Era a dança do ventre. As mulheres tremelicam os quadris na cadência da percussão, tecnicamente irrepreensíveis, diria algum entendido no assunto. Naquela apresentação quem com mais graça contorcia o ventre e alavancava as ancas era a mulher do rosto coberto, a mulher do véu, a mulher conhecida como Jaline Jah. A única membra permanente daquela equipe de dançarinas. O rosto não revelado e uma sensualidade singular faziam de Jaline a “odalisca” campeã em elogios, galanteios e agrados de toda ordem. Bilhetinhos, buquês, presentes e convites para jantar eram comuns. Jaline aceitava tudo com exceção dos contatos pessoais. Não trocava palavra com freguês algum. A postura reservada só lhe aumentava a aura de desejo e mistério. Tamanha procura e paparico fomentava a inveja e o despeito das coadjuvantes que futricavam, brigavam e confabulavam na tentativa de empurrar Jaline para o alçapão da demissão. Tudo inútil. O velho Adail não fazia qualquer menção a esse comportamento. O dono sabia que melindrar Jaline seria matar a águia dos ovos de ouro. Fazia de tudo para perpetuar aquela idolatria que a circundava. Afinal, o caixa das quartas-feiras ficava abarrotado. Uma quarta-feira chuvosa com Jaline era mais lucrativa que um final de semana inteiro com as dançarinas do segundo escalão.
Eu, frequentador antigo e assíduo do Mourinho, sempre me acomodo em uma mesa que fica na parte superior da casa, de frente para o palco. Fico de longe, mas ninguém me dá esbarrão, nem se mete da minha frente. A bebida só demora a chegar... Pouco importa. Fazia o chope render lançando sem parcimônia meus olhares glutões sobre a odalisca de ouro. Os seguranças de plantão, que nas noites de quarta se multiplicavam, faziam de tudo para manter distantes os admiradores mais inflamados. Vi muito marmanjo tomar catiripapo, testemunhei freguês se atracar por causa de Jaline Jah, flagrei mulheres carentes de atenção deixarem seus maridos pra trás motivadas pela ciumeira desmedida. E eu lá de cima sorvendo meu chope degelado, captando todos os detalhes e tecendo mil e uma suposições sobre aquele corpo, sobre aquele rosto coberto pelo véu.
Quem ficasse tocaiando a dançarina nunca via muita coisa. Saía pela portinhola dos fundos, com um sobretudo pelo corpo e com o véu cobrindo o rosto, tomava sempre o mesmo táxi que seguia o fluxo da Mem de Sá.
Foi com desgosto e vazio no bolso que Adail fixou o aviso de que Jaline seria substituída por uma linda dançarina. Choveram protestos e perguntas sobre o proprietário. Valendo-se da minha frequência histórica e do meu conhecimento com o homem, obtive uma resposta quando sugeri um aumento de salário. “Ela já ganha trezentos e cinqüenta fixo, mais dois por cento do féria do dia, mais oitenta por cento da cover. Ela não gosta da dinheiro!” A frequencia do recinto nas quartas-feiras decresceu absurdamente. As dançarinas substitutas se revezavam e nenhuma chegava aos seus pés , aqueles pés pequenos, cheios de contornos, cujos dedos médios eram adornados por um anel. Confesso que divaguei, delirei pensando em como seria segurá-los e acareciá-los de muitas maneiras. Passei incontáveis noites no Mourinho me alimentando de chope e lembranças. Nem o turco Adail, nem outras dançarinas sabiam o paradeiro da superlativa Jaline.

*
O ventre estava crescido, mas foi por lá que reconheci Jaline. Na sessão de laticínios a mulher escolhia um iogurte qualquer e exibia a barriga modificada pelos avançados meses de gravidez. Os mesmos olhos castanhos me fitaram quando gritei seu nome, olhos que agora dividiam os espaços do rosto com a boca de lábios estreitos e o nariz levemente aquilino. Jaline sorriu, deu-me as costas e partiu com os mesmos passos lépidos que usava para abandonar o palco. Neste momento abandonei o recanto da nostalgia e admiti que aquele ventre estava condenado, aprisionado pela criança que guardava.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Visita às primas

Para o  sofista de trem




Nossa a amizade datava da infância, mas o nós de nossos laços afetivos não se firmavam no tempo perdido. O que nos sustentava amigos era o fato de sermos vizinhos de bairro. Todos residiam em algum rincão de Madureza. Além disso, bebericávamos na fonte dos losers suburbanos. Éramos quatro. Éramos, enfim, solidários em nossa miséria; cúmplices em nosso velado ressentimento.
Xaxá era leão. Pilotava o 254. Paulo Banha era ambulante. Vendia e comia churrasquinho na saída da estação. Hércules era carteiro. Fazia a rota Madureza. A gente se encontrava nos fundos do shopping e seguia para o Sodoma`s . O trajeto, feito em silêncio, era amordaçado pelos queixumes da vida compartilhados. Afinal,  o ressentido tem essa mania de ficar remoendo os agravos ancestrais e o faz taciturno feito cão vira-balde que rói o osso desenterrado.
Era pisar o chão da casa de tolerância e se travestir de euforia. Paulo Banha gritava por uma garrafa de label, Hércules corria para o caça-níquel, não sem antes perguntar por sua "namoradinha". Xaxá sondava as novidades da casa. Soube de uma tal Tati Jaceruba. Morena fechada, cabelão que terminava no fim das costas. As ancas fartas e os glúteos salientes faziam a mulher parecer um centauro. Xaxá pousou a mão naquele corpo e subiu as escadinhas para cavalgar.
Não demorou muito, desceu um grosso vozerio. Meu amigo era arrastado por um dos seguranças. Em meio a confusão, tentei criar sentido no discurso desconexo de Xaxá. Ele se precipitou muito. Galudo como estava, ejaculou precocemente. Borrachudo como ficou, quis aproveitar os muitos minutos de seu tempo para conversar com a mulher. Jaceruba se negou. Disse que era paga pra outra coisa e não para trocar ideia; não era psicóloga. Xaxá gritou com a fêmea. Ela chamou o segurança. Na tentativa suicida de mitigar os prejuízos eu disse ao gerente que ia ao Procon. Ele disse tudo bem; desde que pagassem as contas e o programa inclusive. Tudo foi quitado.
Xaxá empacou num bar defronte à casa de tolerância. E lá ficamos até que as funcionárias da boate começaram a deixar o recinto. Jaceruba, mesmo sem os trajes de serviço, continuava cavaluda. Saía com outras duas colegas rumo a um ponto de táxi. Xaxá não se conteve: "Rata! Puta arrombada!". "Eu só recebo pra fazer o que sua mãe faz de graça, meu bem!". A gritaria ganhou efeito dominó. Os únicos que não zoaram com a cara de Xaxá fomos nós que o arrastamos em silêncio para longe dali.
Paulo Banha reclamou fome. Xaxá teve um acesso de choro: "Duzentas gramas de carne! Eu gastei cem reais por causa de duzentas gramas de carne!". Inconsolável. A montanha russa etílica estava na fase do declive galopante.Faltava pouco para chegarmos ao vale da acentuada depressão. Hércules, cada dia mais corcunda, reclamava dores nas costas. Banha estancou na frente de uma padaria que ainda mantinha as portas fechadas. Sentamos pelo chão mesmo e emudecemos, mais uma vez. 
Hércules se escorou em suas últimas forças e quebrou o gelo: "Mas e aí, Xaxá? Tua mãe faz mesmo aquilo tudo de graça?". 
"QUÊ?"
E Madureza amanheceu em grossa porradaria.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Pastor Sydnelson

Sabe aquele momento em que você se depara com um velho conhecido seu, quando há mútuo reconhecimento, mas ninguém ousa tomar a iniciativa do cumprimento? Pois é. Esse fingir não reconhecer só ocorre quando as partes se sentem constrangidas. Quando me deparei com o Pastor Sydnelson, fiquei por demais desconcertado porque acabara de sair do motel e caminhava a passos largos de mão dada com minha parceira para longe dali. O Pastor certamente ficou sem-graça por estar dirigindo um Corolla e por ter deparado comigo em situação relativamente degradante, deixando um motelzinho de quinta em dia promocional.
O primeiro carro de meu agora próspero conhecido foi um gol mil, desses quadradões que bem parecem uma caixinha de fósforo. Eu trabalhava em um cursinho preparatório na cidade de Nilo. Meu patrão era dono de um imóvel que o Pastor locava para promover  cultos. Muitas vezes ajudei a empurrar aquele calhambeque... O sacerdote era grato e bonachão. Não só me pagava uma cerveja como também entornava um copo da gelada. Parecia ingerir um remédio; tomava de uma talagada só.  Justificava a atitude pouco protestante com a passagem bíblica em que JC vertia água em vinho. 
Certa tarde, Pastor Sydnelson chegou pilotando um monza em muito boas condições. Não se vestia maltrapilho. Calça, sapatos e camisa social. Nem parecia aquele molambo que pisava em sandálias de borracha. Indaguei sobre o automóvel. Ele contou como conseguiu: 
"Cheguei atrasado no culto. O carro deu "probrema".. Com a mão lavada de graxa, todo suado eu falei assim: 'Irmãos, olha a mão do pastor! O carro do pastor é velho; faz ele se atrasar pros culto. O pastor precisa de um carro novo pra tocar a obra de Deus. Aleluia!' Foi um fervo. Trataram de formar um caixinha. Um fiel mecânico disse que passava o golzinho pra frente. Em uma semana peguei esse monza. É Deus agindo". Pelo visto Deus atuou mais e mais. Não parou quieto, não poupou esforço para dar a Sydnelson uma máquina importada.
Tempos depois tive mais notícias dele. Ampliou sua casa de oração e arrebanhou grande quantidade de fiéis. Largara a primeira mulher com quem era amancebado para  se casar com uma linda ovelhinha, muito mais jovem. Eu pensei no discurso que o Clérigo protestante poderia ter usado para trocar de companheira: "Irmãos não censurem minha atitude. Preciso trocar de mulher porque a minha já está um tanto gasta..."

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Divindade de mil e uma utilidades

Quando a existência é vazia por falta de recheio,
Apelamos para divindade.
É Deus na hora da morte.
É Jesus pela hora do recreio.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O homem que não engana


Para Lady Lidi.
Perdida nos Trópicos.
Profunda conhecedora do esporte bretão.

Pouco antes de adentrar a arena, Nivaldo sintonizava na rádio Tupi e por ali ouvia os comentários que ora lhe tiravam o sono, ora lhe enchiam de orgulho. A verdade é que achava o povinho da imprensa uma cambada de hienas sem culhão, sempre à espreita de um cadáver abandonado, de uma celebridade esportiva decaída. Mas com Nivaldo, eles mordiam a língua, tinham que dar o braço a torcer. Sua atuação nos jogos era de uma regularidade tão constante, que a cartolagem, que os graúdos começaram a tomar Nivaldo como inflexível. Foram afastando o homem dos grandes embates. Afinal tudo quanto era jogador afamado tinha bronca do extravagante juiz.
Olhava-se no espelho enquanto escovava a carapinha. As têmporas grisalhas lhe enchiam de orgulho, a pança avantajando era consequência de muitas ampolas que entornara ouvindo os sambas dos bambas na quadra da Portela. Time? Detestava todos. Até o Flamengo de seu falecido pai. “Eu sou Portela”, dizia Nivaldo. “Portela de Candeia, de Zé Kéti, de Monarco, de Paulo da Portela, Casquinha, de Ayrão, de João Nogueira e mais outros nomes que não viraram a casaca, que não ficam acendendo uma vela pro santo outra pro capeta feito esses boleiros vendidos.”
O auxiliares e o quarto árbitro chamaram pra fazer uma oração. “Minha oração já tá feita.”, disse Nivaldo beijando o patuá.
Entraram em campo sob a chuva de vaias e xingamentos. O pior é que o estádio estava às moscas. Além de ouvir com nitidez as ofensas, dava pra saber quem era o torcedor boca-suja da vez. Sorte o Madureira ser o time da casa; se o jogo fosse no Moça Bonita, o calorão tornaria tudo pior. Ê, Janeiro. Mal pisou no gramado, ouviu escancarado: “Preto safado!”. As orelhas em brasa. Via a cor de sua pele que tanto lhe orgulhava se travestir de ofensa. Já estava acostumado. Era preto, sim. Negão. Crioulo. O mais respeitado e veterano juiz da federação era crioulo. Apitou Libertadores, Copa América e Semi-Final de Mundial. Só não foi escalado pra Final porque a Copa foi na Itália e lá é apinhado de reaça facista. Iam ter que aturar o negão mais uma vez. Em fase crepuscular de sua carreira e por não ser afeito a futrico político, foi empurrado para os joguinhos menores. Mas os noventa minutos são iguais minutos pros grandes e pros pequenos. Ele corria do mesmo jeito. A imprensa despeitada – repleta de repórter parcialista – o chamava de fuscão preto, velho e fora de moda. Os jornalistas ficavam mordidos porque não lustrava o escudo dos grandes. Só a imprensa nanica fechava com Nivaldo... Marcava pênalti contra o Vasco, expulsava zagueiro do Flamengo, botava o técnico do Bota pra correr, deu safanão no meio-campista pó-de-arroz que lhe cuspiu na cara. Nivaldo Soledade Viana, o homem que não engana. Mais um jogo. Dessa vez entre miúdos cujos cartolas são maiores que o próprio time. O tricolor suburbano vivia uma fase de decadência capenga. Claudicando, tentava escapar do sumidouro que o levaria para o segundo escalão do estadual. O Bangu fazia mais que figuração, era um coadjuvante, suava pra ganhar dos pequenos e era atropelado pelo quarteto gigante. E eram essas as duas forças suburbanas que iniciariam o embate.
O calor judiava. Um bandeira que se dera bem. Aproveitava a nesga de sombra que começava a se formar pela esquerda do ataque banguense. E era por ali que o lateral subia a galope e atazanava a defesa do Madureira. Um cabeça-de-bagre tesourou o pobre. Cartão amarelo mostrou Nivaldo. “Preto filho duma!” “Juiz ladrão, porrada é a solução!” E dá-lhe Bangu. Sufocando. O Goleiro do tricolor não tinha nem folga pra encostar no poste.  Bola na área a todo momento. Chute de longe. Escanteio. O gol logo sairia... Eis que num desses contra-ataques safados, o meia-direita do madura lançou o atacante trombador, ganhou do zagueiro na truculência e, esperando a bola quicar uma vez, chutou com tudo. O goleiro não segurou. Saco! A bangusada chorou falta. Os gatos pingados do tricolor comemoraram muito. Nivaldo olhou na cara do auxiliar que baixou a cabeça. 1 a 0. Depois disso. Foi aquela covardia. O Bangu disparatando no ataque e o Madureira naquele encolhimento. Mais dois cartões amarelos pra cada.

Nivaldo, com altivez, caminhou pro vestiário. O técnico do time do oeste gritou “Ladrão”. “Ladrão é o teu patrão que não paga imposto!”, respondeu na lata. Ligou o rádio portátil. Durante a chuveirada fervente, ouvia os comentários. “Mas esse Nivaldo não enverga, Osmar! Viana não engana! Não Leva desaforo pra casa!” “E nem tem que levar, colega! Gol legal, legal, legal! Totonho trombou com o zagueiro e ganhou porque tem corpo de quem lida na estiva! Na minha opinião, quem falhou foi o goleiro!” Nivaldo amarrava as chuteiras. Nisso, chegou o quarto árbitro. “Nivaldo, alivia os visitantes... O homem lá tá invocado. Disse que você fica apelando só porque é nascido e criado aqui na área.” “Nunca aliviei nem o Flamengo do meu velho. Não tem assunto, não. Jogo se ganha na bola. Depois ele vê o VT e cai em si.”
“Tiziu!” “Frango de macumba!” “Filhote de uma cadela barriguda!” Nivaldo com a bola no colo seguiu emplumado. O joguinho teve seu início. Um reme-reme. Ataque dos de fora versus defesa dos da casa. Bola alçada na área do Madureira. O beque quase arrancou a camisa do atacante quando a bola seguia sua trajetória. Nivaldo Viana soprou forte e apontou para cal. A torcida tricolor matracou. “Ladrão!” “Tua mãe faz plantão na zona!” O capitão do Madureira veio com as mãozinhas nas costas, todo-todo: “Seu safado! Vai roubar na casa do caralho!” Nivaldo puxou o vermelhaço e esfregou na cara do abusado. Nova quizumba. Demorou bem uns cinco minutos pro sujeito sair de campo e todos ficarem a postos. Ainda teve que amarelar o goleiro que catimbava. Peleca, camisa oito do Bangu. Um quase veterano. Exímio cobrador de penais. Partiu pra bola com olhar fixo no meio do gol. O arqueiro se lançou antes para o canto direito. Arreganhou-se feito uma parturiente e testemunhou a bola voando baixo e lenta para o canto oposto. Chocou o poste e pererecou no chão. O zagueirão isolou pra onde o nariz apontava. 1 a 0. Ainda.
Com menos um, o time da casa mexeu. Sacou um atacante. E enfiou um terceiro zagueiro. Ferrolho suburbano. Nivaldo olhou pro relógio. 17:30. Trinta da segunda etapa. E um calor que não cessa. Ê, janeiro! O Bangu tentava, encurralva, Abafava. Chuta pro mato, que é campeonato, respondia o retrancado Madureira. As poucas bolas que iam em direção à meta o goleiro salvava. A contenda virou drama. Falta contra os da casa. O mesmo Peleca, sem esboçar abalo. Abraçou a pelota. Apalpou a esfera tal como fosse bunda de mulher. Beijou a querida. Nivaldo berrou pra barreira sossegar. Soprou. O camisa oito chapou. A redonda encobriu a barreira. De tanto efeito não caiu,  descaiu. O goleiro permaneceu plantado girando o pescoço a apreciando o agonizante espetáculo. A rede acomodou. 1 a 1.
A partir dos 35 o jogo ficou feio e repicado. Cheio de sebo. O time da casa maliciava  e a torcida se voltou contra. Pararam de xingar Viana e passaram a ofender a mãe dos atletas. O jogo ficou quente. Muita catimba, pancada de sobra. Nivaldo encheu as bochechas pra finalizar o jogo aos 51 da segunda etapa, com o desporte descambando pra grossa pancadaria. Nem esperou os PM`s virem ao seu encontro. Saiu em largas passadas para o vestiário. Os bandeiras se puseram em disparada. “Nivaldo, qual é o segredo pra tantas atuações impecáveis?” Não tenho segredo. Quem tem segredo é a  federação que, apesar do meu bom trabalho e do meu condicionamento físico, não permite que eu apite os clássicos!” “É isso, Osmar! Esse é Nivaldo Viana, o homem que não engana!”

Prestes a sair do estádio, foi interpelado pelo quarto árbitro. “O homem mandou agradecer. Convidou o senhor pra assistir de camarote o ensaio da Mocidade.” “Não protejo o Madureira, mas não abandono minha Portela. Diz que eu agradeço.” Nivaldo ainda suava tudo que correra em campo, um calor dos diabos. Ê Janeiro!

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

SOUL SISTER


Sou ressentido assumido. Meu rancor salta dos meus olhos para os olhos de quem me vê. Ao contrário de muitos enrustidos que escamoteiam esse nefasto sentimento, eu o exibo como se fosse uma cicatriz de um acidente mortal ao qual sobrevivi. Uma enorme queloide que marca profundamente minha alma. Reconheço os hipócritas que tentam esconder suas dores e deméritos a todo tempo no biombo do perdão. Não adianta se banhar de perfume quando o corpo clama a emergência do banho. Eu primeiro senti a fragrância importada para depois cruzar com seu olhar.
Gorducha, com sobras de carne em todas as partes do corpo, curvava-se sobre o balcão pedindo fogo ao garçom. Eu me prontifiquei. Estiquei o braço e lhe fiz a gentileza. Ela agradeceu e em troca me ofereceu seu drinque. Vodka com Curaçau Blue, ela disse. Provei. A cor é ótima, eu disse. Rimos juntos.
De vestido vermelho berrante e muita maquiagem, minha ressentida da vez me lembrava uma pomba-gira quando ria  e uma viúva Porcina quando falava. Dançamos ao som do videokê que tocava o cancioneiro brega nacional. Eu lhe fazia as vontades. Enchia seu copo. Depois de muito beber, arrochei sua cintura roliça e colei minha boca na sua. Dali senti todo o amargor: filha única, fora criada com todo amor e com muito esmero, acreditou que era realmente uma princesa, mas aqueles que habitavam fora de seu castelo lhe apontavam a gordura e a ausência de curvas. Protagonizou a novela real “A gordinha rejeitada” e nunca mais abandonou sua personagem. O placebo para sua dor crônica era ludibriar os homens, prometendo-lhes sexo a troco de atenção, de cortejo e bajulação. Mas quando chegava a hora de cumprir sua parte do escambo, dava pinote e fazia o macho cair da certeza.
Terminado o beijo pude sentir o ranço viscoso de sua alminha pesada e ressentida.
Vamos pra algum lugar, eu disse. Estou nos dias, ela disse. Vamos só brincar, então... Fica mais um pouco que teu boquete é garantido. Assenti. Bebemos mais muitas. Saímos cambaleantes à procura de seu carro. Lá chegando, na solidão do estacionamento, cobrei minha paga. Tô passando mal, ela disse. Insisti. Abri a braguilha e ordenei. Tô passando mal, ela disse. Fechei a braguilha. Abri a porta do carro. Antes de sair soquei aquela cara gorda com força. Dei nela os murros endereçados a todas a fêmeas que me rejeitaram. Abri a bolsa. De sua carteira da Victor Hugo, afanei o dinheiro. Saí pelo estacionamento com sensação de bem-estar. Mais uma vez havia encontrado uma alma gêmea ressentida.