Toca a bola, Tabaco!
Sou um medíocre conformado. Não tenho o emprego dos sonhos. Minha mulher é uma desmiolada, evangélica recém-convertida. Minha filha única de dezessete anos já é descabaçada e está grávida do motorista do 678 – acho que essa merdalha deve ter deflorado minha filha no próprio ônibus, nos bancos de trás. Sorte ele não ser preto e nem torcedor do flamengo. Minha única alegria na vida é o futebol. O futebol real, não aquela invencionice que passa na TV. A agremiação pela qual eu jogo há doze anos, O Cascudo F.C. Ajudei a fundar esse time de bairro junto com os parceiros aqui da área. Nos inscrevemos nos campeonatos amadores locais e desde então, rodamos por muitos bairros do subúrbio, da zona oeste e visitamos comunidades. O “Casca” coleciona torneios, campeonatos e troféus de amistosos vários. Chegamos a ficar catorze meses invictos. Foi quando Peleca e Militão faziam a dupla de ataque, Mizinho e o maestro Tabaco inventavam no meio-campo, Marasmo, Lindomar, Hércules Carteiro e Boneco na zaga, o arqueiro paraguaio Buena se jogava pra cima das bolas, catava as difíceis e engolia galetos tremendos. Klinger e eu trancávamos o meio campo. Eu era a segunda estrela do time. Meu brilho é bastidor. Vigoroso, obstinado e disciplinado. Jogava todos os minutos e meu cuspe caía fininho no gramado, parecia sereno. Nunca fui habilidoso, nem rei da grande área, mas em matéria de catimba, procrastinação e capacidade de usar todos os detalhes a favor dos cascudos fizeram de mim capitão e ídolo. De cabeça rapada, barba crescida e monocelha eu aterrorizava os camisas 10 adversários. Batia assim na maciota, sem escandalizar. Tostões, pisadas, cotoveladas, xingamentos, dedadas, beliscões, cusparadas... Sempre usei de todos os recursos escusos para levar meu time à vitória. Nem coleciono expulsões. Sempre tratei o juiz com respeito e formalidade: “Que isso, seu juiz!” era o máximo da verbalização indignada. Depois danava a chorar no ouvido do árbitro, aquela lamúria catimbeira. Recordo uma vez que nosso time ganhava de um do River. Final do jogo, dominei uma bola no grande círculo e chegaram em mim. Mal o adversário encostou, me atirei ao solo. O juiz nada marcou, mas eu abracei a perseguida. Me chutaram, o juiz apitou e começou a porradaria. O time da casa deu no juiz, ganhei um amarelinho e o Cascudo ganhou o jogo. Outra ocasião a gente enfrentava o selecionado da Penha, uma galerinha carne-de-pescoço e tinha no ataque o afamado “Bizorrim”. “Bizorrim”: mineiro, baixote, atarracado, corajoso e muito íntimo da pelota. O sujeito não tinha posição fixa. Criava no meiúca e corria pra receber no ataque. Fiquei por conta de marcar o tal. Eu xinguei, belisquei, patolei. O cara impassível. Dominava a bola e partia pra cima de mim e dos outros, todo confiante; com a certeza de que se daria bem. Tomei uma meia-lua. Marasmo ganhou um chapéu por cima da cabeça grande. Um espetáculo vexatório. Foi quando eu me liguei num fator extra-campo. Sempre que o craque inimigo se aproximava da linha lateral, uma mulher, uma morena cheia de corpo, acenava, jogava beijo, e gritava “Vai, môzão!” Aquele era o calcanhar-de- -aquiles do sujeitinho. Em vez de eu dizer pro cotoco de pelé que a fêmea dele me abria o apetite, comecei a acenar e a jogar beijo para a moça. O cara se apercebeu do abuso e veio tomar satisfação. Fiz minha jogada: “Essa mulher é grande demais pro seu fusquinha, amigo! Olha o tamanho da minha língua, ó!”Botei meio palmo de língua pra fora e franzi o cenho, eu ia completar a ofensa com um “imagina o resto”, mas antes de eu guardar a língua dentro da boca, Bizorrim me acertou um botadão que quase arrancou meu paladar. Caí com a boca minando sangue. Empurra-empurra e o craque esquentadinho foi agarrado e levado pra fora do campo. Nunca mais jogamos na Penha. Fui jurado de morte. Com o passar dos anos, muitos deixaram o Casca. Alguns bem-sucederam e foram morar em bairros nobres. Outros pararam por conta de lesão. Alguns deixaram de ver sentido naquilo. Daquela geração de aço, só restaram eu e Tabaco. Hoje, Tabaco é banco. A maestria, a criatividade, a acuidade nos lançamentos longos tiveram um adversário inapelável: o excesso de peso. Tabaco, em redondas medidas, esbraveja fora do campo. Orientando a molecada. Mês passado, nos minutos derradeiros contra o Monarca do Méier, pênalti a nosso favor. Nem vi direito o lance, Pimpa tombou na área, o zagueiro e o goleiro dos caras danaram a reclamar. Cheguei junto de Pimpa que levava as mãos aos céus. “Fica caído aí.” Ganhando tempo, fiz sinal pro banco. Tabaco quis entrar só pra sentenciar a nossa vitória. A camisa 8 não escondia completamente as banhas. O juiz riu, o adversário fez piada. Tabaco, de boca aberta, de musculatura fria, colocou a esfera na cal. Eu comecei a reclamar de invasão de área no ouvido da autoridade. O juiz apitou. Vi o que o goleiro também viu. A corrida lenta em direção à bola. O toque com a esquerda bem embaixo. O guarda-metas desabando para o canto direito. E o coco girando e desenhando uma parábola invisível. Bem no meio do gol. O goleiro parecia uma tartaruga se debatendo inutilmente querendo virar de bruços enquanto assistia o fechamento do caixão. O veterano batendo palmas corria uma corridinha curta em direção ao campo amigo. A gente corria a passos largos pra abraçar Tabaco. Ele gritava: “À palenca, estilo Zidane, porra!” Na terça me acharam num bar. Era o cabo eleitoral de um político de rabo preso com a milícia de Jacarepaguá. Disseram que era um jogo espetáculo para alavancar a campanha do dito cujo. Iam bancar a churrascada, me deram uma chuteira nova e deram a entender que o Casca tinha que fazer corpo-mole. Deixar o inimigo vencer. “Todo mundo vai sair ganhando”, dizia o assessor. Guardei aquelas palavras e ruminei a situação. Não seria a morte perder um joguinho amistoso. Além disso, eu já estou velho e meu romantismo está mais desbotado que minha camisa cinco “Todo mundo podia sair ganhando”... Mas agora Tabaco e o garoto Pimpa estão aqui. Vieram falar do tal jogo amistoso. Trouxeram a boa-nova que era pra ser uma surpresa pra mim. A partida contra a escória miliciana será a trecentésima vez que entro em campo pelo Cascudo F.C. Nem contabilizava isso. A galera da associação mandou confeccionar uma camisa especial com o número trezentos. Eles contaram também que vai ter uma bandeira com uma caricatura minha e com o dizer “Dinamarco, esse timéteu!”. Sacanagem dos putos. A gente começou a gargalhar. Eu ganho agora todo reconhecimento que me é negado pela família, pelo trabalho. Constato que meu amor por esse time é sólido, firme, permanente e impenetrável. Não tem chuteira, nem agrado que pague esses sorrisos, essa alegria coletiva que joga nossos problemas pessoais na várzea da amnésia. O time encardido do político mafioso vai ter de mim o que de melhor sei fazer. A catimba, a dissimulação, a sabotagem. Tudo isso bentratando a bola e de chuteira nova.
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