terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O homem que não engana


Para Lady Lidi.
Perdida nos Trópicos.
Profunda conhecedora do esporte bretão.

Pouco antes de adentrar a arena, Nivaldo sintonizava na rádio Tupi e por ali ouvia os comentários que ora lhe tiravam o sono, ora lhe enchiam de orgulho. A verdade é que achava o povinho da imprensa uma cambada de hienas sem culhão, sempre à espreita de um cadáver abandonado, de uma celebridade esportiva decaída. Mas com Nivaldo, eles mordiam a língua, tinham que dar o braço a torcer. Sua atuação nos jogos era de uma regularidade tão constante, que a cartolagem, que os graúdos começaram a tomar Nivaldo como inflexível. Foram afastando o homem dos grandes embates. Afinal tudo quanto era jogador afamado tinha bronca do extravagante juiz.
Olhava-se no espelho enquanto escovava a carapinha. As têmporas grisalhas lhe enchiam de orgulho, a pança avantajando era consequência de muitas ampolas que entornara ouvindo os sambas dos bambas na quadra da Portela. Time? Detestava todos. Até o Flamengo de seu falecido pai. “Eu sou Portela”, dizia Nivaldo. “Portela de Candeia, de Zé Kéti, de Monarco, de Paulo da Portela, Casquinha, de Ayrão, de João Nogueira e mais outros nomes que não viraram a casaca, que não ficam acendendo uma vela pro santo outra pro capeta feito esses boleiros vendidos.”
O auxiliares e o quarto árbitro chamaram pra fazer uma oração. “Minha oração já tá feita.”, disse Nivaldo beijando o patuá.
Entraram em campo sob a chuva de vaias e xingamentos. O pior é que o estádio estava às moscas. Além de ouvir com nitidez as ofensas, dava pra saber quem era o torcedor boca-suja da vez. Sorte o Madureira ser o time da casa; se o jogo fosse no Moça Bonita, o calorão tornaria tudo pior. Ê, Janeiro. Mal pisou no gramado, ouviu escancarado: “Preto safado!”. As orelhas em brasa. Via a cor de sua pele que tanto lhe orgulhava se travestir de ofensa. Já estava acostumado. Era preto, sim. Negão. Crioulo. O mais respeitado e veterano juiz da federação era crioulo. Apitou Libertadores, Copa América e Semi-Final de Mundial. Só não foi escalado pra Final porque a Copa foi na Itália e lá é apinhado de reaça facista. Iam ter que aturar o negão mais uma vez. Em fase crepuscular de sua carreira e por não ser afeito a futrico político, foi empurrado para os joguinhos menores. Mas os noventa minutos são iguais minutos pros grandes e pros pequenos. Ele corria do mesmo jeito. A imprensa despeitada – repleta de repórter parcialista – o chamava de fuscão preto, velho e fora de moda. Os jornalistas ficavam mordidos porque não lustrava o escudo dos grandes. Só a imprensa nanica fechava com Nivaldo... Marcava pênalti contra o Vasco, expulsava zagueiro do Flamengo, botava o técnico do Bota pra correr, deu safanão no meio-campista pó-de-arroz que lhe cuspiu na cara. Nivaldo Soledade Viana, o homem que não engana. Mais um jogo. Dessa vez entre miúdos cujos cartolas são maiores que o próprio time. O tricolor suburbano vivia uma fase de decadência capenga. Claudicando, tentava escapar do sumidouro que o levaria para o segundo escalão do estadual. O Bangu fazia mais que figuração, era um coadjuvante, suava pra ganhar dos pequenos e era atropelado pelo quarteto gigante. E eram essas as duas forças suburbanas que iniciariam o embate.
O calor judiava. Um bandeira que se dera bem. Aproveitava a nesga de sombra que começava a se formar pela esquerda do ataque banguense. E era por ali que o lateral subia a galope e atazanava a defesa do Madureira. Um cabeça-de-bagre tesourou o pobre. Cartão amarelo mostrou Nivaldo. “Preto filho duma!” “Juiz ladrão, porrada é a solução!” E dá-lhe Bangu. Sufocando. O Goleiro do tricolor não tinha nem folga pra encostar no poste.  Bola na área a todo momento. Chute de longe. Escanteio. O gol logo sairia... Eis que num desses contra-ataques safados, o meia-direita do madura lançou o atacante trombador, ganhou do zagueiro na truculência e, esperando a bola quicar uma vez, chutou com tudo. O goleiro não segurou. Saco! A bangusada chorou falta. Os gatos pingados do tricolor comemoraram muito. Nivaldo olhou na cara do auxiliar que baixou a cabeça. 1 a 0. Depois disso. Foi aquela covardia. O Bangu disparatando no ataque e o Madureira naquele encolhimento. Mais dois cartões amarelos pra cada.

Nivaldo, com altivez, caminhou pro vestiário. O técnico do time do oeste gritou “Ladrão”. “Ladrão é o teu patrão que não paga imposto!”, respondeu na lata. Ligou o rádio portátil. Durante a chuveirada fervente, ouvia os comentários. “Mas esse Nivaldo não enverga, Osmar! Viana não engana! Não Leva desaforo pra casa!” “E nem tem que levar, colega! Gol legal, legal, legal! Totonho trombou com o zagueiro e ganhou porque tem corpo de quem lida na estiva! Na minha opinião, quem falhou foi o goleiro!” Nivaldo amarrava as chuteiras. Nisso, chegou o quarto árbitro. “Nivaldo, alivia os visitantes... O homem lá tá invocado. Disse que você fica apelando só porque é nascido e criado aqui na área.” “Nunca aliviei nem o Flamengo do meu velho. Não tem assunto, não. Jogo se ganha na bola. Depois ele vê o VT e cai em si.”
“Tiziu!” “Frango de macumba!” “Filhote de uma cadela barriguda!” Nivaldo com a bola no colo seguiu emplumado. O joguinho teve seu início. Um reme-reme. Ataque dos de fora versus defesa dos da casa. Bola alçada na área do Madureira. O beque quase arrancou a camisa do atacante quando a bola seguia sua trajetória. Nivaldo Viana soprou forte e apontou para cal. A torcida tricolor matracou. “Ladrão!” “Tua mãe faz plantão na zona!” O capitão do Madureira veio com as mãozinhas nas costas, todo-todo: “Seu safado! Vai roubar na casa do caralho!” Nivaldo puxou o vermelhaço e esfregou na cara do abusado. Nova quizumba. Demorou bem uns cinco minutos pro sujeito sair de campo e todos ficarem a postos. Ainda teve que amarelar o goleiro que catimbava. Peleca, camisa oito do Bangu. Um quase veterano. Exímio cobrador de penais. Partiu pra bola com olhar fixo no meio do gol. O arqueiro se lançou antes para o canto direito. Arreganhou-se feito uma parturiente e testemunhou a bola voando baixo e lenta para o canto oposto. Chocou o poste e pererecou no chão. O zagueirão isolou pra onde o nariz apontava. 1 a 0. Ainda.
Com menos um, o time da casa mexeu. Sacou um atacante. E enfiou um terceiro zagueiro. Ferrolho suburbano. Nivaldo olhou pro relógio. 17:30. Trinta da segunda etapa. E um calor que não cessa. Ê, janeiro! O Bangu tentava, encurralva, Abafava. Chuta pro mato, que é campeonato, respondia o retrancado Madureira. As poucas bolas que iam em direção à meta o goleiro salvava. A contenda virou drama. Falta contra os da casa. O mesmo Peleca, sem esboçar abalo. Abraçou a pelota. Apalpou a esfera tal como fosse bunda de mulher. Beijou a querida. Nivaldo berrou pra barreira sossegar. Soprou. O camisa oito chapou. A redonda encobriu a barreira. De tanto efeito não caiu,  descaiu. O goleiro permaneceu plantado girando o pescoço a apreciando o agonizante espetáculo. A rede acomodou. 1 a 1.
A partir dos 35 o jogo ficou feio e repicado. Cheio de sebo. O time da casa maliciava  e a torcida se voltou contra. Pararam de xingar Viana e passaram a ofender a mãe dos atletas. O jogo ficou quente. Muita catimba, pancada de sobra. Nivaldo encheu as bochechas pra finalizar o jogo aos 51 da segunda etapa, com o desporte descambando pra grossa pancadaria. Nem esperou os PM`s virem ao seu encontro. Saiu em largas passadas para o vestiário. Os bandeiras se puseram em disparada. “Nivaldo, qual é o segredo pra tantas atuações impecáveis?” Não tenho segredo. Quem tem segredo é a  federação que, apesar do meu bom trabalho e do meu condicionamento físico, não permite que eu apite os clássicos!” “É isso, Osmar! Esse é Nivaldo Viana, o homem que não engana!”

Prestes a sair do estádio, foi interpelado pelo quarto árbitro. “O homem mandou agradecer. Convidou o senhor pra assistir de camarote o ensaio da Mocidade.” “Não protejo o Madureira, mas não abandono minha Portela. Diz que eu agradeço.” Nivaldo ainda suava tudo que correra em campo, um calor dos diabos. Ê Janeiro!

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