domingo, 7 de agosto de 2011

Introdução do livro Quando Ronca o meu Rancor

“Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. A frase atribuída a William Shakespeare apresenta com muita propriedade a ideia de que o rancor, a mágoa, o ressentimento e afins são sentimentos autodegenerativos. O aforismo do dramaturgo bretão justifica a culpa e a condenação sofridas por muitos rancorosos já que a lógica senso-comum se desdobra da seguinte maneira: O ressentimento é algo que me traz prejuízos. Sendo assim, devo fazer de tudo para me livrar dele, pois caso eu venha contrair uma doença degenerativa, todos irão me culpar por ser o causador de minha própria desgraça. Além disso, caso eu confirme minhas mágoas e negue o perdão, estarei estigmatizado por ir de encontro a uma das mais elementares ideias cristãs. Por tudo isso, mesmo que eu não consiga me libertar do rancor, é melhor escondê-lo.
Saiamos da superfície para descer até a escura masmorra. Dentre os sentimentos verbalizados e já identificados por alguma etiqueta que chamamos de “palavra”, o rancor talvez seja o menos valido. É isso que constato ao me deparar com o fato de que raras pessoas se assumam rancorosas. Ainda que o sejam, preferem esconder o ressentimento como se ele fosse um motivo para se envergonhar. Sou diferente. Assumo meu rancor. Discuto demoradamente sobre ele. Faço isso porque o rancor é também definido como ódio profundo não expresso, como uma besta enjaulada em nosso peito que ruge pela liberdade. Sendo assim, exibir o rançoso sentimento é uma forma terapêutica de mitigá-lo, de tornar mais serena a fera reclusa.
Creio que o rancoroso deve se livrar também do estigma da culpa. O algoz que aplica 13 chibatadas em um prisioneiro fatalmente irá se esquecer do ato cruel. Contudo, aquele que teve o couro rasgado pelos golpes do chicote carrega o queloide na alma por muitos anos. Em suma, quem bate costuma esquecer; já quem apanha jamais esquece. O pesar talvez tenha origem na permissividade que se teve diante do agressor. Não nos perdoamos e nos culpamos por termos permitido sermos sacaneados uma ou duzentas vezes. Não se sinta culpado. Não sinta remorso. Não sinta remordimento. Foi o outro que não permitiu que você gostasse dele.
Perdoar não significa se libertar dos executores. Imagine um sujeito que pisa em seu pé. Ele se desculpa, mas dá a mesma pisadela em seu dedão calejado sempre que tem oportunidade. Nesse caso, perdoar é deixar-se humilhar, é permitir ser maltratado. Então qual solução para impedir que o rancor seja um sentimento nocivo que carcome o espírito e faz brotar um tumor nas entranhas? Muito embora eu não seja um guru da autoajuda, creio que a solução seja condenar os desafetos ao exílio. Devemos afastar de nossa existência todo aquele que nos faz um recorrente mal. Mantê-los por perto na esperança de aplicar um revés ou que se tornem benfazejos nada mais é do que aliviar ventre na latrina e ficar encarando os dejetos. A matéria fecal e o passado não têm serventia. Já saíram de você; já passaram. Todavia é preciso coragem, pois a tão cultuada gratidão, os laços de parentesco, a sede por vingança e arroubos de culpa são grilhões que muitas vezes prendem as vítimas aos seus algozes. É necessária a tenacidade de um mártir para escapar do claustro.
Os rancorosos que figuram nesses esboços narrativos são personagens que encarnam o nefasto sentimento de inúmeras maneiras. Todos eles estão aprisionados nos agravos do passado. Eles preferem se abraçar aos seus rancores (como diria João Antônio) porque é a único bem que lhes resta. Exilam-se na sombria ilha dos ressentidos. Apesar de habitarem no mundo da ficção, as figuras que aqui aparecem são mais verdadeiras do que seus pares do mundo dito real. Tais personagens não se preocupam em abafar o ronco do rancor.  

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