segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Por onde andará Jaline Jah


 O bar e restaurante Mourinho lotava todas as noites de quarta. A clientela que se apertava nas mesinhas de quatro lugares e se punha de pé sobre a calçada não fazia seu hapy hour ali por causa do chope gelado, do Arak ou dos quitudes típicos que por lá eram servidos. Se apinhavam para assistir a uma curta apresentação de dança sobre o pequeno palco improvisado. Três artistas subiam no tablado em hora marcada e iniciavam o meneio oriental. Remexiam suas barrigas, braços e quadris promovendo um requebro mais sensual do que o sapateio das passistas, o remelexo mais afrodisíaco que o rebolado das funkeiras. Era a dança do ventre. As mulheres tremelicam os quadris na cadência da percussão, tecnicamente irrepreensíveis, diria algum entendido no assunto. Naquela apresentação quem com mais graça contorcia o ventre e alavancava as ancas era a mulher do rosto coberto, a mulher do véu, a mulher conhecida como Jaline Jah. A única membra permanente daquela equipe de dançarinas. O rosto não revelado e uma sensualidade singular faziam de Jaline a “odalisca” campeã em elogios, galanteios e agrados de toda ordem. Bilhetinhos, buquês, presentes e convites para jantar eram comuns. Jaline aceitava tudo com exceção dos contatos pessoais. Não trocava palavra com freguês algum. A postura reservada só lhe aumentava a aura de desejo e mistério. Tamanha procura e paparico fomentava a inveja e o despeito das coadjuvantes que futricavam, brigavam e confabulavam na tentativa de empurrar Jaline para o alçapão da demissão. Tudo inútil. O velho Adail não fazia qualquer menção a esse comportamento. O dono sabia que melindrar Jaline seria matar a águia dos ovos de ouro. Fazia de tudo para perpetuar aquela idolatria que a circundava. Afinal, o caixa das quartas-feiras ficava abarrotado. Uma quarta-feira chuvosa com Jaline era mais lucrativa que um final de semana inteiro com as dançarinas do segundo escalão.
Eu, frequentador antigo e assíduo do Mourinho, sempre me acomodo em uma mesa que fica na parte superior da casa, de frente para o palco. Fico de longe, mas ninguém me dá esbarrão, nem se mete da minha frente. A bebida só demora a chegar... Pouco importa. Fazia o chope render lançando sem parcimônia meus olhares glutões sobre a odalisca de ouro. Os seguranças de plantão, que nas noites de quarta se multiplicavam, faziam de tudo para manter distantes os admiradores mais inflamados. Vi muito marmanjo tomar catiripapo, testemunhei freguês se atracar por causa de Jaline Jah, flagrei mulheres carentes de atenção deixarem seus maridos pra trás motivadas pela ciumeira desmedida. E eu lá de cima sorvendo meu chope degelado, captando todos os detalhes e tecendo mil e uma suposições sobre aquele corpo, sobre aquele rosto coberto pelo véu.
Quem ficasse tocaiando a dançarina nunca via muita coisa. Saía pela portinhola dos fundos, com um sobretudo pelo corpo e com o véu cobrindo o rosto, tomava sempre o mesmo táxi que seguia o fluxo da Mem de Sá.
Foi com desgosto e vazio no bolso que Adail fixou o aviso de que Jaline seria substituída por uma linda dançarina. Choveram protestos e perguntas sobre o proprietário. Valendo-se da minha frequência histórica e do meu conhecimento com o homem, obtive uma resposta quando sugeri um aumento de salário. “Ela já ganha trezentos e cinqüenta fixo, mais dois por cento do féria do dia, mais oitenta por cento da cover. Ela não gosta da dinheiro!” A frequencia do recinto nas quartas-feiras decresceu absurdamente. As dançarinas substitutas se revezavam e nenhuma chegava aos seus pés , aqueles pés pequenos, cheios de contornos, cujos dedos médios eram adornados por um anel. Confesso que divaguei, delirei pensando em como seria segurá-los e acareciá-los de muitas maneiras. Passei incontáveis noites no Mourinho me alimentando de chope e lembranças. Nem o turco Adail, nem outras dançarinas sabiam o paradeiro da superlativa Jaline.

*
O ventre estava crescido, mas foi por lá que reconheci Jaline. Na sessão de laticínios a mulher escolhia um iogurte qualquer e exibia a barriga modificada pelos avançados meses de gravidez. Os mesmos olhos castanhos me fitaram quando gritei seu nome, olhos que agora dividiam os espaços do rosto com a boca de lábios estreitos e o nariz levemente aquilino. Jaline sorriu, deu-me as costas e partiu com os mesmos passos lépidos que usava para abandonar o palco. Neste momento abandonei o recanto da nostalgia e admiti que aquele ventre estava condenado, aprisionado pela criança que guardava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.