sábado, 7 de maio de 2011

Pé da Boba

Conselho de classe. Se tomássemos ao pé da letra cada palavra que compõe o título dado à reunião, teríamos uma resolução conjunta sobre os assuntos concernentes à sala de aula. Porém, a reunião que sempre nos rouba um bom naco do fim de semana não resolve nada e em nada ter a ver com os elementos que formam o corpo docente. Como já sei o que me espera naquele auditório, tomo um mandrix acompanhado de uma dose generosa de uísque cowboy. Escovo os dentes com a paciência de Jó. Passo a fita dentifrícia em todas as frestas. Sinto os gosto inapetente da limpeza bucal. Óculos Ray-Ban e perfume importado. Barba loira por fazer pra ficar com cara de sábado de sol.
O professorado reunido. Ela entra com a diretora gorducha. Propõe mais uma daquelas dinâmicas ridículas que mais constrange do que divertide. Ao final daquela brincadeira medonha, segue um palavrório com frases pré-moldadas. Educação é amor, educação é troca afetiva, seduzir o aluno, ser tolerante... E escola cobra a bagatela de mil e duzentos reais por cabeça... Sento próximo ao professor Calebe, velho depravado. Em cochicho, comenta os atributos glúteos e mamários das professoras. Ouço tudo em silêncio.
Lança-se o carômetro em data show. Essa vai, esse não vai. Esse tem probleminha. Aquela foi violentada pelo tio-avô cadeirante. Aquele é bom e beltrano também. Vão rotulando as pessoas com a etiqueta aluno. A diretora quer empurrar todo mundo para o ano letivo seguinte. Os professores muito compromissados se enervam: Passa comigo, não! Passa comigo, não!
A boba é posuda. Vestida com uma elegância que expõe a beleza em bandeja de prata. Quase tudo coberto. Só revela o necessário. Os pés. Pés 35. Um 35 tão formoso, tão harmonioso que passa a número redondo. Pezinhos ricos em curvas. Dedos esculpidos que exibem unhas cuidadosamente pintadas em sintonia cromática com as sandálias. Ela me chama. Observa a quantidade incomum de notas vermelhas. Vermelho é o sangue, vermelha é paixão, vermelha é essa boca que me fala, vermelho é quase a cor desse esmalte. Diz que eu preciso tentar uma aproximação com os alunos porque são turmas com defict de aprendizagem. Sugere estratégias. Concordo com tudo. Chuparia cada um daqueles dedos como se fosse o mais fino acepipe. Aqueles dedinhos me fariam salivar, implorar por pisadelas em um português infâme: Pisa neu! Ela descruza as pernas. Eu remexo nos diários e faço o movimento nervoso de ir e vir com a ponta da caneta retrátil. Ela cita os teóricos da educação. Uma professorinha encorujada resmunga que assim não vai dar pé. Dá pé, sim. A boba se arvora no discurso da educação libertadora. Lá do alto ela é intocável, não entra em sala. Eu só olho pra baixo. Encaro aquelas extremidades que sustentam a boneca esnobe. Imagino aqueles pés maculados de lama, imundos. Eu os lavaria carinhosamente para depois secá-los com uma toalha branca e felpuda. Ela se levanta, passa para trás das bancadas para melhor explicar os gráficos expostos pelo data show. Os pés desaparecem. Vou ao fundo da sala para buscar um cafezinho. A professora de Artes mais sem graça que boneco palito diz gostar do meu perfume. Sorrio agradecido. 
Começam a distribuição das avaliações do corpo docente. Apesar do desempenho medíocre de meus alunos, sou bem avaliado. Não entendo o porquê. Boa parte dos docentes fica se remexendo de raiva, balançando a cabeça em discordância. Fim da reunião. Mestre Calebe chega até mim. Diz que tem regressões quando olha o decote da professora de Literatura. Viaja até os seus imemoriais anos lactentes. Feliz o rebento que mamará naquelas tetas!, profetiza. Convida para um chope  com os colegas. Dou-lhe dois tapinhas no ombro e agradeço:
"Não bebo, professor."

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Delator

"Professor, Se senhor tiver a curiosidade de um dia buscar no dicionário o significado da palavra delação, poderá encontrar como sinônimo denúncia. Desta sinonímia discordo totalmente. Os senhores Aurélio e Houaiss deveriam ler menos, pesquisar menos e viver mais. Assim entenderiam que as palavras vivem em seus usos e não estanques na ordem alfabética do pai dos burros."

"Sei que denúncia não é o mesmo que delação. Denunciamos algo que sabemos ser ilegal, uma atitude nociva à sociedade ou a um indivíduo. Para denunciar, não é necessário que estejamos infiltrados entre criminosos e corruptos. Denunciamos à distância... Já a delação tem algo de espúrio e antiético. O delator muitas vezes se disfarça de criminoso para buscar provas e testemunhar contra os infratores. Ou então delata porque é contrariado, porque não tira todas as vantagens do esquema. A delação é tão baixa que para ela há inúmeros outros termos que lhe servem de tabuísmos. E tais expressões a ela relacionadas tornam seu significado ainda mais denso. Alcaguetagem, deduragem, dedo de gesso, X9, dedo de seta, dedo-duro..."

"Muito bem, Professor. Vejo que o senhor tem a total noção de que se tratam de conceitos distintos. Sendo assim, haverá de convir que o aluno em questão fez uma denúncia e não uma delação."

"Discordo. Devem ser levados em conta uma série de fatores. Em primeiro lugar, o aluno "denuncista" tem comportamento nada exemplar. Boceja alto na hora da explicação, não faz nenhuma atividade individual e apenas assina o nome nos trabalhos em grupo. Conversa o tempo todo. Alvejou a professora de Artes Plásticas com uma borracha. Mata aula. Atende o celular em sala. Comete uma série muito sortida de indisciplinas. Em vez de se concentrar no execício, ficou me chamando por mímica e apontando com o lábio inferior para a aluna que estava no fim da sala."

"Os erros dele não corrigem o erro daquela jovem."

"Desenhar um coração com caneta marca-texto na parede é algo diminuto perto do rosário de problemas que  o aluno apresenta."

"Pichar é uma infração grave que deve ser punida com todo rigor!"

"Em segundo lugar, o que a aluna desenhou na parede nada tem de pichação. E por fim, o alcagueta só chamou minha atenção para isso porque sabia que seria por mim advertido. Apontou para a garota justo quando eu me aproximava de sua mesa. Fez isso para driblar minha atenção."

"Ok, professor. Contudo, o senhor não pode contestar a punição  que está prevista no estatuto interno desta escola. Somos uma escola pública modelar, não podemos nos igualar as demais escolas onde tudo de ruim acontece."

"Ficamos rebaixados ao mesmo nível das demais escolas quando queremos punir o que está na superfície, sem buscar corrigir aquilo que não é aparente e que, por não aparecer, é muito mais daninho..."

"Onde o senhor quer chegar com isso?"

"Ao seguinte ponto: Não é justo "punir de maneira exemplar" uma boa aluna que desenhou um coraçãozinho na parede usando uma caneta marca-texto ainda mais quando ela foi dedurada pelo pior aluno da sala que quis apenas desviar o foco. São os piores alunos que deduram. Eles sentem inveja e têm uma autoestima rastejante. Deduram o colega porque não conseguem aprender e buscam nisso uma maneira de sabotar aulas e se sentirem menos maus alunos. E convenhamos: os verdadeiros pichadores fazem isso nas paredes dos banheiros longe da vista de todos. Infligir castigo a essa menina equivale a premiar o delator."

"Muito bem, Professor. Levarei em consideração essa conversa. Pode ir. E, por favor, peça para os alunos entrarem ."

***
"A senhora sabe quanto dinheiro custa pintar toda essa escola? Por acaso a senhora tem por hábito desenhar corações na parede de sua casa? Trate de pegar uma esponja e sabão com o pessoal dos serviços gerais porque a senhora vai limpar a sujeira que fez na vista de todos. Depois volte aqui para tratarmos da sua advertência."

"Quanto ao senhor, espero que melhore suas notas e seu comportamento. Faz muito bem em zelar pela a limpeza da escola."


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bom de Briga

A blindagem do fraco é prostrar-se na inferioridade. É fazer de sua fraqueza um passe-livre para transitar no território fortificado. É cômodo ser o fraco,  o vitimado, o bullyinado. Difícil é invadir um espaço já demarcado. Mas, quando o fazemos, ganhamos, no mínimo, respeito.
Naquela escolinha rural, o forte era Dilsinho. Viu em mim o recém-chegado que teria de pagar o preço por ser forasteiro, por chiar na pronúncia dos "s" finais. No caminho para a sala, gritou: "carioca da bunda choca!" Revidei: "Choca é a galinha da tua mãe!" Dilsinho partiu em minha direção muito disposto. Com a musculatura trabalhada pela lavoura, acertou-me muitos cachaços que eu revidei com menor eficiência. Em meu primeiro dia de aula, adentrei a sala com a cara vermelha e beiço rachado.
A professora, a quem chamávamos de Dona Santa, era uma senhora obesa e gritona. Usava de três métodos para punir os alunos bagunceiros e com dificuldades de aprendizagem: cadernadas, beliscões e saraivadas com uma peça de metal que usava para apontar no quadro. Meu bom aproveitamento e discrição retardaram as primeiras agressões de Dona Santa. Até que um dia ela me perguntou: "O que comeu no café?" "Pão e café-com-leite.", respondi. Ela gritou: "Se diz leite com café!" "Qual a diferença?" Para deleite de muitos, minha pergunta foi motivo suficiente para duas cadernadas no coco.
Minha inteligência de menino alfabetizado pela vó causava inveja nos colegas. Dilsinho e sua patota se aprumaram na hora da merenda. Eu tinha um caneca de mingau quente à mão. Tratei de atirar o conteúdo nas fuças de meu inimigo. Os comparsas estancaram surpresos. Aproveitei a paralisia geral e cobri Dilsinho de chutes e socos. Formou-se plateia. Fui suspenso. A partir de então ganhei seguidores e tomei conhecimento de meu poder.
Minha força não era física obviamente. Meus pais tinham uma condição financeira superior se comparada a dos habitantes da região. Luz elétrica, rádio e televisão. Convidava os colegas para irem à minha casa brincar. No final da tarde, minha mãe servia guloseimas que as crianças devoravam sem cerimônia. A farta hospitalidade ajudou a formar meu grupo de amigos: Os irmãos Angeli e Erli, André Boi e Fimose. Este último era assim chamado porque sua cabeça era colada entre os ombros. Pescoço ali parecia não existir. Apesar do apelido, Fimose não era por nós achincalhado; era digno de uma nesga de sol.
Dilsinho e seu bando passaram a me respeitar e aquela rixa foi sublimada. Medíamos força nas partidas de futebol, no bafo, na disputa de gudes. Volta e meia a gente se topava de atiradeira na mão à caça de passarinho. Mal nos falávamos.
Quando iniciei o terceiro ano ginasial, tinha minha popularidade elevada às alturas. Bom de bola, inteligente, boa praça e uma marrinha caricata. A combinação me rendeu o apelido óbvio: carioca. Com minha identidade formada, espaço conquistado e amigos, ir para escola tornara-se um prazer. 
Satisfação maior ainda encontraria  fora da escola. Marciana, aluna repetente, com considerável devassagem idade/série, trabalhava feito homem na propriedade de sua família. Seu Pai, Seu Inácio, só bebia e reclamava da doença que lhe comeu a perna. A mãe cuidava do caçula e fazia doces para pôr à venda. Marciana tinha de fazer um trabalho alienígena para as mulheres locais. O pasto por onde tocava o gado era próximo à minha casa. Com pena, a mãe mandou que eu levasse um pedaço de bolo para ela. Quando ao curral cheguei pude bem ver suas costas sardentas enquanto ela separava o bezerro da vaca. A cebeleira desgrenhada, o rosto todo marcado por sardas, o corpo insinuante coberto por um vestido surrado exerceram sobre mim um certo fascínio. "A mãe mandou pra tu." "Ocê subiu  até aqui só pra trazê esse bolo pra eu?" "É".
Desde então, nossos encontros pelo pasto se tornaram regulares. Na escola, o contato se restringia a olhares. Não demorou mês, Marciana rolou comigo pelas moitas de capim braquiária. Tirava a roupa de baixo e levantava a saia. Exibia o sexo coberto pela relva castanha. Nossas tardes de inverno se acabavam  naquele primitivo folguedo. A mãe já atinada, deixou de enviar os quitutes. E constatando que eu voltava pra casa com a roupa pejada de carrapicho e o corpo castigado pelos carrapatos, tratou de reclamar com o Pai. O Pai se riu: "Êta ferro! Deixa o menino! Isso é sanha de garrote atrás de novilha mojando!"  Estava mesmo encegueirado. Neguei até convite de férias no Rio.
Na escola, minha postura mudou. Menos piadista, mais sisudo. Agarrei no pescoço de André Boi que tentou levantar a saia de Marciana na fila da merenda. Nunca mais o convidei para minha casa. Corria para casa pensando naquele corpo marcado de sarda e carrapato. 
Dilsinho observou que eu estava vulnerável. Descobriu minha Kriptonita. "Ocê tá de namoro com a vaca malhada, heim?" Nem respondi. Saímos no braço. Minha ira era tanta que compensou minha falta de robustez. Nova suspensão, dessa vez, para ambos.
Depois do incidente, o boato se espalhou de maneira contínua como o sangue que minava de meu nariz e se espalhava lentamente pelo branco da camisa. Marciana passou a se esquivar. Passou a subir para o curral acompanhada do irmão menor. Recusou a broa de fubá que roubei da despensa. Senti a dor da perda. A dor maior, o desgosto mais amargo eu senti quando flagrei Marciana subir na garupa da bicicleta de Dilsinho na hora da saída. Caí em tristeza profunda. Fiquei uma semana sem ir à escola, vagando pelas trilhas e pastagens incertas. A mãe percebia minha depressão, era   toda atenção para comigo e comentou que meu corpo estava livre de parasitas.