quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bom de Briga

A blindagem do fraco é prostrar-se na inferioridade. É fazer de sua fraqueza um passe-livre para transitar no território fortificado. É cômodo ser o fraco,  o vitimado, o bullyinado. Difícil é invadir um espaço já demarcado. Mas, quando o fazemos, ganhamos, no mínimo, respeito.
Naquela escolinha rural, o forte era Dilsinho. Viu em mim o recém-chegado que teria de pagar o preço por ser forasteiro, por chiar na pronúncia dos "s" finais. No caminho para a sala, gritou: "carioca da bunda choca!" Revidei: "Choca é a galinha da tua mãe!" Dilsinho partiu em minha direção muito disposto. Com a musculatura trabalhada pela lavoura, acertou-me muitos cachaços que eu revidei com menor eficiência. Em meu primeiro dia de aula, adentrei a sala com a cara vermelha e beiço rachado.
A professora, a quem chamávamos de Dona Santa, era uma senhora obesa e gritona. Usava de três métodos para punir os alunos bagunceiros e com dificuldades de aprendizagem: cadernadas, beliscões e saraivadas com uma peça de metal que usava para apontar no quadro. Meu bom aproveitamento e discrição retardaram as primeiras agressões de Dona Santa. Até que um dia ela me perguntou: "O que comeu no café?" "Pão e café-com-leite.", respondi. Ela gritou: "Se diz leite com café!" "Qual a diferença?" Para deleite de muitos, minha pergunta foi motivo suficiente para duas cadernadas no coco.
Minha inteligência de menino alfabetizado pela vó causava inveja nos colegas. Dilsinho e sua patota se aprumaram na hora da merenda. Eu tinha um caneca de mingau quente à mão. Tratei de atirar o conteúdo nas fuças de meu inimigo. Os comparsas estancaram surpresos. Aproveitei a paralisia geral e cobri Dilsinho de chutes e socos. Formou-se plateia. Fui suspenso. A partir de então ganhei seguidores e tomei conhecimento de meu poder.
Minha força não era física obviamente. Meus pais tinham uma condição financeira superior se comparada a dos habitantes da região. Luz elétrica, rádio e televisão. Convidava os colegas para irem à minha casa brincar. No final da tarde, minha mãe servia guloseimas que as crianças devoravam sem cerimônia. A farta hospitalidade ajudou a formar meu grupo de amigos: Os irmãos Angeli e Erli, André Boi e Fimose. Este último era assim chamado porque sua cabeça era colada entre os ombros. Pescoço ali parecia não existir. Apesar do apelido, Fimose não era por nós achincalhado; era digno de uma nesga de sol.
Dilsinho e seu bando passaram a me respeitar e aquela rixa foi sublimada. Medíamos força nas partidas de futebol, no bafo, na disputa de gudes. Volta e meia a gente se topava de atiradeira na mão à caça de passarinho. Mal nos falávamos.
Quando iniciei o terceiro ano ginasial, tinha minha popularidade elevada às alturas. Bom de bola, inteligente, boa praça e uma marrinha caricata. A combinação me rendeu o apelido óbvio: carioca. Com minha identidade formada, espaço conquistado e amigos, ir para escola tornara-se um prazer. 
Satisfação maior ainda encontraria  fora da escola. Marciana, aluna repetente, com considerável devassagem idade/série, trabalhava feito homem na propriedade de sua família. Seu Pai, Seu Inácio, só bebia e reclamava da doença que lhe comeu a perna. A mãe cuidava do caçula e fazia doces para pôr à venda. Marciana tinha de fazer um trabalho alienígena para as mulheres locais. O pasto por onde tocava o gado era próximo à minha casa. Com pena, a mãe mandou que eu levasse um pedaço de bolo para ela. Quando ao curral cheguei pude bem ver suas costas sardentas enquanto ela separava o bezerro da vaca. A cebeleira desgrenhada, o rosto todo marcado por sardas, o corpo insinuante coberto por um vestido surrado exerceram sobre mim um certo fascínio. "A mãe mandou pra tu." "Ocê subiu  até aqui só pra trazê esse bolo pra eu?" "É".
Desde então, nossos encontros pelo pasto se tornaram regulares. Na escola, o contato se restringia a olhares. Não demorou mês, Marciana rolou comigo pelas moitas de capim braquiária. Tirava a roupa de baixo e levantava a saia. Exibia o sexo coberto pela relva castanha. Nossas tardes de inverno se acabavam  naquele primitivo folguedo. A mãe já atinada, deixou de enviar os quitutes. E constatando que eu voltava pra casa com a roupa pejada de carrapicho e o corpo castigado pelos carrapatos, tratou de reclamar com o Pai. O Pai se riu: "Êta ferro! Deixa o menino! Isso é sanha de garrote atrás de novilha mojando!"  Estava mesmo encegueirado. Neguei até convite de férias no Rio.
Na escola, minha postura mudou. Menos piadista, mais sisudo. Agarrei no pescoço de André Boi que tentou levantar a saia de Marciana na fila da merenda. Nunca mais o convidei para minha casa. Corria para casa pensando naquele corpo marcado de sarda e carrapato. 
Dilsinho observou que eu estava vulnerável. Descobriu minha Kriptonita. "Ocê tá de namoro com a vaca malhada, heim?" Nem respondi. Saímos no braço. Minha ira era tanta que compensou minha falta de robustez. Nova suspensão, dessa vez, para ambos.
Depois do incidente, o boato se espalhou de maneira contínua como o sangue que minava de meu nariz e se espalhava lentamente pelo branco da camisa. Marciana passou a se esquivar. Passou a subir para o curral acompanhada do irmão menor. Recusou a broa de fubá que roubei da despensa. Senti a dor da perda. A dor maior, o desgosto mais amargo eu senti quando flagrei Marciana subir na garupa da bicicleta de Dilsinho na hora da saída. Caí em tristeza profunda. Fiquei uma semana sem ir à escola, vagando pelas trilhas e pastagens incertas. A mãe percebia minha depressão, era   toda atenção para comigo e comentou que meu corpo estava livre de parasitas.


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