terça-feira, 15 de março de 2011

Casaca

"A alma descarrega suas paixões sobre objetos falsos, quando lhe faltam os verdadeiros" (Michel de Montaigne)


Em dia de clássico, minha presença no estádio era certa. Pouco importava quais escuderias iriam se degladiar. Saía de casa à paisana e vestia a camisa do time da vez no entorno do estádio. Me alocava mais próximo possível de alguma torcida organizada. E ali ficava. Decorava os cânticos, os gritos de ordem. Observava os tipos: torcedores profissionais, entusiastas, turistas, pais que levavam suas crias ao estádio pela primeira vez. Constatava que isso era universal. Em todas as torcidas, essas figuras se repetiam; apenas trajavam diferentes cores. E eu, do meu canto, nada sentia. Nenhuma comoção me alcançava. Não abria a boca nem mesmo para gritar gol. 
Meu pai era um doente. Um apaixonado. Contemporâneo à geração de Zico, meu velho acompanhou a sequência de conquistas de seu time, o que fez acentuar sua sandice. Esquecia o aniversário de casamento, mas lembrava do natalício do Galinho. Dominava de cor e salteado as escalações de todos os elencos que levantaram taças. Quando fiquei mais taludo, passei a acompanhá-lo aos estádios. Até que num dia de clássico topamos com a torcida rival. Mandaram meu pai tirar a minha camisa. Ele contestou. Um alvoroço começou a se formar. Uma pedrada lhe sobrou em cheio na cara . Caiu no chão emborcado. Enquanto se formava a poça de sangue, os inimigos arrancaram minha camisa. A pedrada lhe roubou a visão e o ódio me cegou. Com os olhos embotados para a paixão clubística, pude encarar a verdade: o que alejou meu pai foi o ressentimento que é o amálgama comum a todas as torcidas organizadas. Por isso, detesto todas.
Foi justo no dia do mesmo clássico que decidi matar minha sede de vingança. Fui para estádio. Assisti ao jogo naquele mesmo esquema. Muito na minha. Na hora do gol, me abraçaram, eu me deixei abraçar. Fixei a atenção num torcedor pançudo que tinha a cruz de cristo tatuada no braço. Seus movimentos eram exagerados. Na hora do intervalo, fui até o banheiro. Tirei o 38 que estava colado em meu peito com fita adesiva. A polícia só revista a cintura e os fundilhos do torcedor. Coloquei a arma no bolso do casaco e fui para o lugar de antes. Posicionei-me mais perto que pude do gorducho da colina. Assim que saiu o segundo tento, colei a arma em suas costas e apertei o gatilho duas vezes. Fugi em meio àquele alvoroço, àquela histeria.
Ao chegar em casa, a corriqueira cena: meu pai sentado na sala, segurando o radinho de pilhas. "Perdemos, filho. Me conta como foi. Acompanhar daqui nunca é a mesma coisa..."



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