sábado, 26 de fevereiro de 2011

Submundo da Bola

Toca a bola, Tabaco!


Sou um medíocre conformado. Não tenho o emprego dos sonhos. Minha mulher é uma desmiolada, evangélica recém-convertida. Minha filha única de dezessete anos já é descabaçada e está grávida do motorista do 678 – acho que essa merdalha deve ter deflorado minha filha no próprio ônibus, nos bancos de trás. Sorte ele não ser preto e nem torcedor do flamengo. Minha única alegria na vida é o futebol. O futebol real, não aquela invencionice que passa na TV. A agremiação pela qual eu jogo há doze anos, O Cascudo F.C. Ajudei a fundar esse time de bairro junto com os parceiros aqui da área. Nos inscrevemos nos campeonatos amadores locais e desde então, rodamos por muitos bairros do subúrbio, da zona oeste e visitamos comunidades. O “Casca” coleciona torneios, campeonatos e troféus de amistosos vários. Chegamos a ficar catorze meses invictos. Foi quando Peleca e Militão faziam a dupla de ataque, Mizinho e o maestro Tabaco inventavam no meio-campo, Marasmo, Lindomar, Hércules Carteiro e Boneco na zaga, o arqueiro paraguaio Buena se jogava pra cima das bolas, catava as difíceis e engolia galetos tremendos. Klinger e eu trancávamos o meio campo. Eu era a segunda estrela do time. Meu brilho é bastidor. Vigoroso, obstinado e disciplinado. Jogava todos os minutos e meu cuspe caía fininho no gramado, parecia sereno. Nunca fui habilidoso, nem rei da grande área, mas em matéria de catimba, procrastinação e capacidade de usar todos os detalhes a favor dos cascudos fizeram de mim capitão e ídolo. De cabeça rapada, barba crescida e monocelha eu aterrorizava os camisas 10 adversários. Batia assim na maciota, sem escandalizar. Tostões, pisadas, cotoveladas, xingamentos, dedadas, beliscões, cusparadas... Sempre usei de todos os recursos escusos para levar meu time à vitória. Nem coleciono expulsões. Sempre tratei o juiz com respeito e formalidade: “Que isso, seu juiz!” era o máximo da verbalização indignada. Depois danava a chorar no ouvido do árbitro, aquela lamúria catimbeira. Recordo uma vez que nosso time ganhava de um do River. Final do jogo, dominei uma bola no grande círculo e chegaram em mim. Mal o adversário encostou, me atirei ao solo. O juiz nada marcou, mas eu abracei a perseguida. Me chutaram, o juiz apitou e começou a porradaria. O time da casa deu no juiz, ganhei um amarelinho e o Cascudo ganhou o jogo. Outra ocasião a gente enfrentava o selecionado da Penha, uma galerinha carne-de-pescoço e tinha no ataque o afamado “Bizorrim”. “Bizorrim”: mineiro, baixote, atarracado, corajoso e muito íntimo da pelota. O sujeito não tinha posição fixa. Criava no meiúca e corria pra receber no ataque. Fiquei por conta de marcar o tal. Eu xinguei, belisquei, patolei. O cara impassível. Dominava a bola e partia pra cima de mim e dos outros, todo confiante; com a certeza de que se daria bem. Tomei uma meia-lua. Marasmo ganhou um chapéu por cima da cabeça grande. Um espetáculo vexatório. Foi quando eu me liguei num fator extra-campo. Sempre que o craque inimigo se aproximava da linha lateral, uma mulher, uma morena cheia de corpo, acenava, jogava beijo, e gritava “Vai, môzão!” Aquele era o calcanhar-de-         -aquiles do sujeitinho. Em vez de eu dizer pro cotoco de  pelé que a fêmea dele me abria o apetite, comecei a acenar e a jogar beijo para a moça. O cara se apercebeu do abuso e veio tomar satisfação. Fiz minha jogada: “Essa mulher é grande demais pro seu fusquinha, amigo! Olha o tamanho da minha língua, ó!”Botei meio palmo de língua pra fora e franzi o cenho, eu ia completar a ofensa com um “imagina o resto”, mas antes de eu guardar a língua dentro da boca, Bizorrim me acertou um botadão que quase arrancou meu paladar. Caí com a boca minando sangue. Empurra-empurra e o craque esquentadinho foi agarrado e levado pra fora do campo. Nunca mais jogamos na Penha. Fui jurado de morte. Com o passar dos anos, muitos deixaram o Casca. Alguns bem-sucederam e foram morar em bairros nobres. Outros pararam por conta de lesão. Alguns deixaram de ver sentido naquilo. Daquela geração de aço, só restaram eu e Tabaco. Hoje, Tabaco é banco. A maestria, a criatividade, a acuidade nos lançamentos longos tiveram um adversário inapelável: o excesso de peso. Tabaco, em redondas medidas, esbraveja fora do campo. Orientando a molecada. Mês passado, nos minutos derradeiros contra o Monarca do Méier, pênalti a nosso favor. Nem vi direito o lance, Pimpa tombou na área, o zagueiro e o goleiro dos caras danaram a reclamar. Cheguei junto de Pimpa que levava as mãos aos céus. “Fica caído aí.” Ganhando tempo, fiz sinal pro banco. Tabaco quis entrar só pra sentenciar a nossa vitória. A camisa 8 não escondia completamente as banhas. O juiz riu, o adversário fez piada. Tabaco, de boca aberta, de musculatura fria, colocou a esfera na cal. Eu comecei a reclamar de invasão de área no ouvido da autoridade. O juiz apitou. Vi o que o goleiro também viu. A corrida lenta em direção à bola. O toque com a esquerda bem embaixo. O guarda-metas desabando para o canto direito. E o coco girando e desenhando uma parábola invisível. Bem no meio do gol. O goleiro parecia uma tartaruga se debatendo inutilmente querendo virar de bruços enquanto assistia o fechamento do caixão. O veterano batendo palmas corria uma corridinha curta em direção ao campo amigo. A gente corria a passos largos pra abraçar Tabaco. Ele gritava: “À palenca, estilo Zidane, porra!”
Na terça me acharam num bar. Era o cabo eleitoral de um político de rabo preso com a milícia de Jacarepaguá. Disseram que era um jogo espetáculo para alavancar a campanha do dito cujo. Iam bancar a churrascada, me deram uma chuteira nova e deram a entender que o Casca tinha que fazer corpo-mole. Deixar o inimigo vencer. “Todo mundo vai sair ganhando”, dizia o assessor. Guardei aquelas palavras e ruminei a situação. Não seria a morte perder um joguinho amistoso. Além disso, eu já estou velho e meu romantismo está mais desbotado que minha camisa cinco “Todo mundo podia sair ganhando”... Mas agora Tabaco e o garoto Pimpa estão aqui. Vieram falar do tal jogo amistoso. Trouxeram a boa-nova que era pra ser uma surpresa pra mim. A partida contra a escória miliciana será a trecentésima vez que entro em campo pelo Cascudo F.C. Nem contabilizava isso. A galera da associação mandou confeccionar uma camisa especial com o número trezentos. Eles contaram também que vai ter uma bandeira com uma caricatura minha e com o dizer “Dinamarco, esse timéteu!”. Sacanagem dos putos. A gente começou a gargalhar. Eu ganho agora todo reconhecimento que me é negado pela família, pelo trabalho. Constato que meu amor por esse time é sólido, firme, permanente e impenetrável. Não tem chuteira, nem agrado que pague esses sorrisos, essa alegria coletiva que joga nossos problemas pessoais na várzea da amnésia. O time encardido do político mafioso vai ter de mim o que de melhor sei fazer. A catimba, a dissimulação, a sabotagem. Tudo isso bentratando a bola e de chuteira nova.

Contrato

Nossa relação não passa de um trato
Tu me arranhas
Tu te acanhas
E eu te bato.
Para que compromisso?
Se quando estamos distantes,
as lembranças são escassas
e o desejo se faz de omisso.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Festas Infantis

Uma pungente marca suburbana é a franca disposição para promover festejos infantis. As comemorações natalícias seguem anualmente até que menino se verta em rapazola e menina se torne ninfeta. Então eles dão um basta e ganham a soltura da rua. Fui convidado para o aniversário do filho de um antigo amigo. O quadro corriqueiro: Mais adultos que crianças, muita cerveja, frituras mil, músicas infantis que estupram nossos ouvidos e a molecada se divertindo no pula-pula e na piscina de bolas. Em meio ao agito a mãe gritava ao aniversariante: "Não corre, menino! Vai ficar todo sujo!" O moleque fantasiado de vasco já estava banhado de suor. O uniforme cruz-maltino apresentava manchas várias, fazendo lembrar o couro de um dálmata. 
Para aplacar a chateação, bebi muitos copos da cerveja snow, a cerveja que desce gelando. Suco de cevada da pior espécie esse. Nem gelado estava. Escumava feito baba de camelo quando derrubada no copo... No cume da onda etílica, comecei a ter terríveis visões: desceram um judas, um boneco gigante com a camisa rubro-negra com o nome "Zico" e o número 10. A molecada, incontrolável, partiu pra cima do galinho de pano na esperança de apanhar as guloseimas que serviam de estofo. As crianças, independente do time para qual torciam, divertiam-se deveras. Mas os adultos principiaram um desentendimento. Um sujeito gorducho, muito inflado pela soberba comum aos flamenguistas, começou a manifestar a megalomania. Ofendeu o brio do botafoguense mais próximo: "O melhor que o botinha conseguiu foi tomar o lugar de vice do vasco!" O saudoso dos tempos do Túlio Maravilha devolveu: "Molambo!". E feito crianças, os dois homens se atracaram, rolaram no chão para o desespero de suas esposas e demais convidados. Fui-me embora antes dos Parabéns. Esperar a partilha do bolo seria o mesmo que dividir a falta de bom-senso.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Peixe Frito

Vai, minha suburbana!
Me crava os dentes com vontade,
Faz da gordura o teu gloss
Que eu sou peixe frito:
Crocante por fora,
Tenro por dentro...
...repleto de espinhas.

A quem me indicar possa

Mumunhentos, mamateiros, useiros e vezeiros do recurso de prometer sem garantir. É assim que defino essa monta de instituições privadas que propõem processos seletivos meritocráticos para dar transparência às contratações. Tudo aparência; tudo ilusão. Um bom desempenho não tem validade se você não tiver um "padrinho" que abençoe teu currículo com a chancela do Q.I. E a referida sigla em nada tem a ver com inteligência...
Mas eu aprendi. Aprendi a ser político. Daqui pra frente vou azeitar minhas palavras e ações com a vaselina da hipocrisia, da adulação e da sedução rampeira. Darei razão ao seu discurso preconceituoso, compartilharei das suas sandices religiosas e darei ouvidos a todas as mentiras que me contar, desde que minha politicagem seja o adubo da  sua indicação.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Tira a máscara, Genevieve

Se para o carnaval queres ter o eu-histrião,
É bom que desças do pedestal e da arrogância abras mão.
Joga sobre mim o esguicho etílico de colombina louca
Na boca!
Na boca!
Ou te agarres aos teus petits chiens blasé.
E deixes que este folião
Desapareça na multidão.

Boleiro Ressentido

Quero um banho de sal grosso que me livre dos entraves
Porque meu talento não me livra do impedimento
Tampouco minha capacidade
Livra minhas bolas das traves.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Por onde andará Jaline Jah


 O bar e restaurante Mourinho lotava todas as noites de quarta. A clientela que se apertava nas mesinhas de quatro lugares e se punha de pé sobre a calçada não fazia seu hapy hour ali por causa do chope gelado, do Arak ou dos quitudes típicos que por lá eram servidos. Se apinhavam para assistir a uma curta apresentação de dança sobre o pequeno palco improvisado. Três artistas subiam no tablado em hora marcada e iniciavam o meneio oriental. Remexiam suas barrigas, braços e quadris promovendo um requebro mais sensual do que o sapateio das passistas, o remelexo mais afrodisíaco que o rebolado das funkeiras. Era a dança do ventre. As mulheres tremelicam os quadris na cadência da percussão, tecnicamente irrepreensíveis, diria algum entendido no assunto. Naquela apresentação quem com mais graça contorcia o ventre e alavancava as ancas era a mulher do rosto coberto, a mulher do véu, a mulher conhecida como Jaline Jah. A única membra permanente daquela equipe de dançarinas. O rosto não revelado e uma sensualidade singular faziam de Jaline a “odalisca” campeã em elogios, galanteios e agrados de toda ordem. Bilhetinhos, buquês, presentes e convites para jantar eram comuns. Jaline aceitava tudo com exceção dos contatos pessoais. Não trocava palavra com freguês algum. A postura reservada só lhe aumentava a aura de desejo e mistério. Tamanha procura e paparico fomentava a inveja e o despeito das coadjuvantes que futricavam, brigavam e confabulavam na tentativa de empurrar Jaline para o alçapão da demissão. Tudo inútil. O velho Adail não fazia qualquer menção a esse comportamento. O dono sabia que melindrar Jaline seria matar a águia dos ovos de ouro. Fazia de tudo para perpetuar aquela idolatria que a circundava. Afinal, o caixa das quartas-feiras ficava abarrotado. Uma quarta-feira chuvosa com Jaline era mais lucrativa que um final de semana inteiro com as dançarinas do segundo escalão.
Eu, frequentador antigo e assíduo do Mourinho, sempre me acomodo em uma mesa que fica na parte superior da casa, de frente para o palco. Fico de longe, mas ninguém me dá esbarrão, nem se mete da minha frente. A bebida só demora a chegar... Pouco importa. Fazia o chope render lançando sem parcimônia meus olhares glutões sobre a odalisca de ouro. Os seguranças de plantão, que nas noites de quarta se multiplicavam, faziam de tudo para manter distantes os admiradores mais inflamados. Vi muito marmanjo tomar catiripapo, testemunhei freguês se atracar por causa de Jaline Jah, flagrei mulheres carentes de atenção deixarem seus maridos pra trás motivadas pela ciumeira desmedida. E eu lá de cima sorvendo meu chope degelado, captando todos os detalhes e tecendo mil e uma suposições sobre aquele corpo, sobre aquele rosto coberto pelo véu.
Quem ficasse tocaiando a dançarina nunca via muita coisa. Saía pela portinhola dos fundos, com um sobretudo pelo corpo e com o véu cobrindo o rosto, tomava sempre o mesmo táxi que seguia o fluxo da Mem de Sá.
Foi com desgosto e vazio no bolso que Adail fixou o aviso de que Jaline seria substituída por uma linda dançarina. Choveram protestos e perguntas sobre o proprietário. Valendo-se da minha frequência histórica e do meu conhecimento com o homem, obtive uma resposta quando sugeri um aumento de salário. “Ela já ganha trezentos e cinqüenta fixo, mais dois por cento do féria do dia, mais oitenta por cento da cover. Ela não gosta da dinheiro!” A frequencia do recinto nas quartas-feiras decresceu absurdamente. As dançarinas substitutas se revezavam e nenhuma chegava aos seus pés , aqueles pés pequenos, cheios de contornos, cujos dedos médios eram adornados por um anel. Confesso que divaguei, delirei pensando em como seria segurá-los e acareciá-los de muitas maneiras. Passei incontáveis noites no Mourinho me alimentando de chope e lembranças. Nem o turco Adail, nem outras dançarinas sabiam o paradeiro da superlativa Jaline.

*
O ventre estava crescido, mas foi por lá que reconheci Jaline. Na sessão de laticínios a mulher escolhia um iogurte qualquer e exibia a barriga modificada pelos avançados meses de gravidez. Os mesmos olhos castanhos me fitaram quando gritei seu nome, olhos que agora dividiam os espaços do rosto com a boca de lábios estreitos e o nariz levemente aquilino. Jaline sorriu, deu-me as costas e partiu com os mesmos passos lépidos que usava para abandonar o palco. Neste momento abandonei o recanto da nostalgia e admiti que aquele ventre estava condenado, aprisionado pela criança que guardava.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Visita às primas

Para o  sofista de trem




Nossa a amizade datava da infância, mas o nós de nossos laços afetivos não se firmavam no tempo perdido. O que nos sustentava amigos era o fato de sermos vizinhos de bairro. Todos residiam em algum rincão de Madureza. Além disso, bebericávamos na fonte dos losers suburbanos. Éramos quatro. Éramos, enfim, solidários em nossa miséria; cúmplices em nosso velado ressentimento.
Xaxá era leão. Pilotava o 254. Paulo Banha era ambulante. Vendia e comia churrasquinho na saída da estação. Hércules era carteiro. Fazia a rota Madureza. A gente se encontrava nos fundos do shopping e seguia para o Sodoma`s . O trajeto, feito em silêncio, era amordaçado pelos queixumes da vida compartilhados. Afinal,  o ressentido tem essa mania de ficar remoendo os agravos ancestrais e o faz taciturno feito cão vira-balde que rói o osso desenterrado.
Era pisar o chão da casa de tolerância e se travestir de euforia. Paulo Banha gritava por uma garrafa de label, Hércules corria para o caça-níquel, não sem antes perguntar por sua "namoradinha". Xaxá sondava as novidades da casa. Soube de uma tal Tati Jaceruba. Morena fechada, cabelão que terminava no fim das costas. As ancas fartas e os glúteos salientes faziam a mulher parecer um centauro. Xaxá pousou a mão naquele corpo e subiu as escadinhas para cavalgar.
Não demorou muito, desceu um grosso vozerio. Meu amigo era arrastado por um dos seguranças. Em meio a confusão, tentei criar sentido no discurso desconexo de Xaxá. Ele se precipitou muito. Galudo como estava, ejaculou precocemente. Borrachudo como ficou, quis aproveitar os muitos minutos de seu tempo para conversar com a mulher. Jaceruba se negou. Disse que era paga pra outra coisa e não para trocar ideia; não era psicóloga. Xaxá gritou com a fêmea. Ela chamou o segurança. Na tentativa suicida de mitigar os prejuízos eu disse ao gerente que ia ao Procon. Ele disse tudo bem; desde que pagassem as contas e o programa inclusive. Tudo foi quitado.
Xaxá empacou num bar defronte à casa de tolerância. E lá ficamos até que as funcionárias da boate começaram a deixar o recinto. Jaceruba, mesmo sem os trajes de serviço, continuava cavaluda. Saía com outras duas colegas rumo a um ponto de táxi. Xaxá não se conteve: "Rata! Puta arrombada!". "Eu só recebo pra fazer o que sua mãe faz de graça, meu bem!". A gritaria ganhou efeito dominó. Os únicos que não zoaram com a cara de Xaxá fomos nós que o arrastamos em silêncio para longe dali.
Paulo Banha reclamou fome. Xaxá teve um acesso de choro: "Duzentas gramas de carne! Eu gastei cem reais por causa de duzentas gramas de carne!". Inconsolável. A montanha russa etílica estava na fase do declive galopante.Faltava pouco para chegarmos ao vale da acentuada depressão. Hércules, cada dia mais corcunda, reclamava dores nas costas. Banha estancou na frente de uma padaria que ainda mantinha as portas fechadas. Sentamos pelo chão mesmo e emudecemos, mais uma vez. 
Hércules se escorou em suas últimas forças e quebrou o gelo: "Mas e aí, Xaxá? Tua mãe faz mesmo aquilo tudo de graça?". 
"QUÊ?"
E Madureza amanheceu em grossa porradaria.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Pastor Sydnelson

Sabe aquele momento em que você se depara com um velho conhecido seu, quando há mútuo reconhecimento, mas ninguém ousa tomar a iniciativa do cumprimento? Pois é. Esse fingir não reconhecer só ocorre quando as partes se sentem constrangidas. Quando me deparei com o Pastor Sydnelson, fiquei por demais desconcertado porque acabara de sair do motel e caminhava a passos largos de mão dada com minha parceira para longe dali. O Pastor certamente ficou sem-graça por estar dirigindo um Corolla e por ter deparado comigo em situação relativamente degradante, deixando um motelzinho de quinta em dia promocional.
O primeiro carro de meu agora próspero conhecido foi um gol mil, desses quadradões que bem parecem uma caixinha de fósforo. Eu trabalhava em um cursinho preparatório na cidade de Nilo. Meu patrão era dono de um imóvel que o Pastor locava para promover  cultos. Muitas vezes ajudei a empurrar aquele calhambeque... O sacerdote era grato e bonachão. Não só me pagava uma cerveja como também entornava um copo da gelada. Parecia ingerir um remédio; tomava de uma talagada só.  Justificava a atitude pouco protestante com a passagem bíblica em que JC vertia água em vinho. 
Certa tarde, Pastor Sydnelson chegou pilotando um monza em muito boas condições. Não se vestia maltrapilho. Calça, sapatos e camisa social. Nem parecia aquele molambo que pisava em sandálias de borracha. Indaguei sobre o automóvel. Ele contou como conseguiu: 
"Cheguei atrasado no culto. O carro deu "probrema".. Com a mão lavada de graxa, todo suado eu falei assim: 'Irmãos, olha a mão do pastor! O carro do pastor é velho; faz ele se atrasar pros culto. O pastor precisa de um carro novo pra tocar a obra de Deus. Aleluia!' Foi um fervo. Trataram de formar um caixinha. Um fiel mecânico disse que passava o golzinho pra frente. Em uma semana peguei esse monza. É Deus agindo". Pelo visto Deus atuou mais e mais. Não parou quieto, não poupou esforço para dar a Sydnelson uma máquina importada.
Tempos depois tive mais notícias dele. Ampliou sua casa de oração e arrebanhou grande quantidade de fiéis. Largara a primeira mulher com quem era amancebado para  se casar com uma linda ovelhinha, muito mais jovem. Eu pensei no discurso que o Clérigo protestante poderia ter usado para trocar de companheira: "Irmãos não censurem minha atitude. Preciso trocar de mulher porque a minha já está um tanto gasta..."

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Divindade de mil e uma utilidades

Quando a existência é vazia por falta de recheio,
Apelamos para divindade.
É Deus na hora da morte.
É Jesus pela hora do recreio.