Sou ressentido assumido. Meu rancor salta dos meus olhos para os olhos de quem me vê. Ao contrário de muitos enrustidos que escamoteiam esse nefasto sentimento, eu o exibo como se fosse uma cicatriz de um acidente mortal ao qual sobrevivi. Uma enorme queloide que marca profundamente minha alma. Reconheço os hipócritas que tentam esconder suas dores e deméritos a todo tempo no biombo do perdão. Não adianta se banhar de perfume quando o corpo clama a emergência do banho. Eu primeiro senti a fragrância importada para depois cruzar com seu olhar.
Gorducha, com sobras de carne em todas as partes do corpo, curvava-se sobre o balcão pedindo fogo ao garçom. Eu me prontifiquei. Estiquei o braço e lhe fiz a gentileza. Ela agradeceu e em troca me ofereceu seu drinque. Vodka com Curaçau Blue, ela disse. Provei. A cor é ótima, eu disse. Rimos juntos.
De vestido vermelho berrante e muita maquiagem, minha ressentida da vez me lembrava uma pomba-gira quando ria e uma viúva Porcina quando falava. Dançamos ao som do videokê que tocava o cancioneiro brega nacional. Eu lhe fazia as vontades. Enchia seu copo. Depois de muito beber, arrochei sua cintura roliça e colei minha boca na sua. Dali senti todo o amargor: filha única, fora criada com todo amor e com muito esmero, acreditou que era realmente uma princesa, mas aqueles que habitavam fora de seu castelo lhe apontavam a gordura e a ausência de curvas. Protagonizou a novela real “A gordinha rejeitada” e nunca mais abandonou sua personagem. O placebo para sua dor crônica era ludibriar os homens, prometendo-lhes sexo a troco de atenção, de cortejo e bajulação. Mas quando chegava a hora de cumprir sua parte do escambo, dava pinote e fazia o macho cair da certeza.
Terminado o beijo pude sentir o ranço viscoso de sua alminha pesada e ressentida.
Vamos pra algum lugar, eu disse. Estou nos dias, ela disse. Vamos só brincar, então... Fica mais um pouco que teu boquete é garantido. Assenti. Bebemos mais muitas. Saímos cambaleantes à procura de seu carro. Lá chegando, na solidão do estacionamento, cobrei minha paga. Tô passando mal, ela disse. Insisti. Abri a braguilha e ordenei. Tô passando mal, ela disse. Fechei a braguilha. Abri a porta do carro. Antes de sair soquei aquela cara gorda com força. Dei nela os murros endereçados a todas a fêmeas que me rejeitaram. Abri a bolsa. De sua carteira da Victor Hugo, afanei o dinheiro. Saí pelo estacionamento com sensação de bem-estar. Mais uma vez havia encontrado uma alma gêmea ressentida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.