terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O homem que não engana


Para Lady Lidi.
Perdida nos Trópicos.
Profunda conhecedora do esporte bretão.

Pouco antes de adentrar a arena, Nivaldo sintonizava na rádio Tupi e por ali ouvia os comentários que ora lhe tiravam o sono, ora lhe enchiam de orgulho. A verdade é que achava o povinho da imprensa uma cambada de hienas sem culhão, sempre à espreita de um cadáver abandonado, de uma celebridade esportiva decaída. Mas com Nivaldo, eles mordiam a língua, tinham que dar o braço a torcer. Sua atuação nos jogos era de uma regularidade tão constante, que a cartolagem, que os graúdos começaram a tomar Nivaldo como inflexível. Foram afastando o homem dos grandes embates. Afinal tudo quanto era jogador afamado tinha bronca do extravagante juiz.
Olhava-se no espelho enquanto escovava a carapinha. As têmporas grisalhas lhe enchiam de orgulho, a pança avantajando era consequência de muitas ampolas que entornara ouvindo os sambas dos bambas na quadra da Portela. Time? Detestava todos. Até o Flamengo de seu falecido pai. “Eu sou Portela”, dizia Nivaldo. “Portela de Candeia, de Zé Kéti, de Monarco, de Paulo da Portela, Casquinha, de Ayrão, de João Nogueira e mais outros nomes que não viraram a casaca, que não ficam acendendo uma vela pro santo outra pro capeta feito esses boleiros vendidos.”
O auxiliares e o quarto árbitro chamaram pra fazer uma oração. “Minha oração já tá feita.”, disse Nivaldo beijando o patuá.
Entraram em campo sob a chuva de vaias e xingamentos. O pior é que o estádio estava às moscas. Além de ouvir com nitidez as ofensas, dava pra saber quem era o torcedor boca-suja da vez. Sorte o Madureira ser o time da casa; se o jogo fosse no Moça Bonita, o calorão tornaria tudo pior. Ê, Janeiro. Mal pisou no gramado, ouviu escancarado: “Preto safado!”. As orelhas em brasa. Via a cor de sua pele que tanto lhe orgulhava se travestir de ofensa. Já estava acostumado. Era preto, sim. Negão. Crioulo. O mais respeitado e veterano juiz da federação era crioulo. Apitou Libertadores, Copa América e Semi-Final de Mundial. Só não foi escalado pra Final porque a Copa foi na Itália e lá é apinhado de reaça facista. Iam ter que aturar o negão mais uma vez. Em fase crepuscular de sua carreira e por não ser afeito a futrico político, foi empurrado para os joguinhos menores. Mas os noventa minutos são iguais minutos pros grandes e pros pequenos. Ele corria do mesmo jeito. A imprensa despeitada – repleta de repórter parcialista – o chamava de fuscão preto, velho e fora de moda. Os jornalistas ficavam mordidos porque não lustrava o escudo dos grandes. Só a imprensa nanica fechava com Nivaldo... Marcava pênalti contra o Vasco, expulsava zagueiro do Flamengo, botava o técnico do Bota pra correr, deu safanão no meio-campista pó-de-arroz que lhe cuspiu na cara. Nivaldo Soledade Viana, o homem que não engana. Mais um jogo. Dessa vez entre miúdos cujos cartolas são maiores que o próprio time. O tricolor suburbano vivia uma fase de decadência capenga. Claudicando, tentava escapar do sumidouro que o levaria para o segundo escalão do estadual. O Bangu fazia mais que figuração, era um coadjuvante, suava pra ganhar dos pequenos e era atropelado pelo quarteto gigante. E eram essas as duas forças suburbanas que iniciariam o embate.
O calor judiava. Um bandeira que se dera bem. Aproveitava a nesga de sombra que começava a se formar pela esquerda do ataque banguense. E era por ali que o lateral subia a galope e atazanava a defesa do Madureira. Um cabeça-de-bagre tesourou o pobre. Cartão amarelo mostrou Nivaldo. “Preto filho duma!” “Juiz ladrão, porrada é a solução!” E dá-lhe Bangu. Sufocando. O Goleiro do tricolor não tinha nem folga pra encostar no poste.  Bola na área a todo momento. Chute de longe. Escanteio. O gol logo sairia... Eis que num desses contra-ataques safados, o meia-direita do madura lançou o atacante trombador, ganhou do zagueiro na truculência e, esperando a bola quicar uma vez, chutou com tudo. O goleiro não segurou. Saco! A bangusada chorou falta. Os gatos pingados do tricolor comemoraram muito. Nivaldo olhou na cara do auxiliar que baixou a cabeça. 1 a 0. Depois disso. Foi aquela covardia. O Bangu disparatando no ataque e o Madureira naquele encolhimento. Mais dois cartões amarelos pra cada.

Nivaldo, com altivez, caminhou pro vestiário. O técnico do time do oeste gritou “Ladrão”. “Ladrão é o teu patrão que não paga imposto!”, respondeu na lata. Ligou o rádio portátil. Durante a chuveirada fervente, ouvia os comentários. “Mas esse Nivaldo não enverga, Osmar! Viana não engana! Não Leva desaforo pra casa!” “E nem tem que levar, colega! Gol legal, legal, legal! Totonho trombou com o zagueiro e ganhou porque tem corpo de quem lida na estiva! Na minha opinião, quem falhou foi o goleiro!” Nivaldo amarrava as chuteiras. Nisso, chegou o quarto árbitro. “Nivaldo, alivia os visitantes... O homem lá tá invocado. Disse que você fica apelando só porque é nascido e criado aqui na área.” “Nunca aliviei nem o Flamengo do meu velho. Não tem assunto, não. Jogo se ganha na bola. Depois ele vê o VT e cai em si.”
“Tiziu!” “Frango de macumba!” “Filhote de uma cadela barriguda!” Nivaldo com a bola no colo seguiu emplumado. O joguinho teve seu início. Um reme-reme. Ataque dos de fora versus defesa dos da casa. Bola alçada na área do Madureira. O beque quase arrancou a camisa do atacante quando a bola seguia sua trajetória. Nivaldo Viana soprou forte e apontou para cal. A torcida tricolor matracou. “Ladrão!” “Tua mãe faz plantão na zona!” O capitão do Madureira veio com as mãozinhas nas costas, todo-todo: “Seu safado! Vai roubar na casa do caralho!” Nivaldo puxou o vermelhaço e esfregou na cara do abusado. Nova quizumba. Demorou bem uns cinco minutos pro sujeito sair de campo e todos ficarem a postos. Ainda teve que amarelar o goleiro que catimbava. Peleca, camisa oito do Bangu. Um quase veterano. Exímio cobrador de penais. Partiu pra bola com olhar fixo no meio do gol. O arqueiro se lançou antes para o canto direito. Arreganhou-se feito uma parturiente e testemunhou a bola voando baixo e lenta para o canto oposto. Chocou o poste e pererecou no chão. O zagueirão isolou pra onde o nariz apontava. 1 a 0. Ainda.
Com menos um, o time da casa mexeu. Sacou um atacante. E enfiou um terceiro zagueiro. Ferrolho suburbano. Nivaldo olhou pro relógio. 17:30. Trinta da segunda etapa. E um calor que não cessa. Ê, janeiro! O Bangu tentava, encurralva, Abafava. Chuta pro mato, que é campeonato, respondia o retrancado Madureira. As poucas bolas que iam em direção à meta o goleiro salvava. A contenda virou drama. Falta contra os da casa. O mesmo Peleca, sem esboçar abalo. Abraçou a pelota. Apalpou a esfera tal como fosse bunda de mulher. Beijou a querida. Nivaldo berrou pra barreira sossegar. Soprou. O camisa oito chapou. A redonda encobriu a barreira. De tanto efeito não caiu,  descaiu. O goleiro permaneceu plantado girando o pescoço a apreciando o agonizante espetáculo. A rede acomodou. 1 a 1.
A partir dos 35 o jogo ficou feio e repicado. Cheio de sebo. O time da casa maliciava  e a torcida se voltou contra. Pararam de xingar Viana e passaram a ofender a mãe dos atletas. O jogo ficou quente. Muita catimba, pancada de sobra. Nivaldo encheu as bochechas pra finalizar o jogo aos 51 da segunda etapa, com o desporte descambando pra grossa pancadaria. Nem esperou os PM`s virem ao seu encontro. Saiu em largas passadas para o vestiário. Os bandeiras se puseram em disparada. “Nivaldo, qual é o segredo pra tantas atuações impecáveis?” Não tenho segredo. Quem tem segredo é a  federação que, apesar do meu bom trabalho e do meu condicionamento físico, não permite que eu apite os clássicos!” “É isso, Osmar! Esse é Nivaldo Viana, o homem que não engana!”

Prestes a sair do estádio, foi interpelado pelo quarto árbitro. “O homem mandou agradecer. Convidou o senhor pra assistir de camarote o ensaio da Mocidade.” “Não protejo o Madureira, mas não abandono minha Portela. Diz que eu agradeço.” Nivaldo ainda suava tudo que correra em campo, um calor dos diabos. Ê Janeiro!

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

SOUL SISTER


Sou ressentido assumido. Meu rancor salta dos meus olhos para os olhos de quem me vê. Ao contrário de muitos enrustidos que escamoteiam esse nefasto sentimento, eu o exibo como se fosse uma cicatriz de um acidente mortal ao qual sobrevivi. Uma enorme queloide que marca profundamente minha alma. Reconheço os hipócritas que tentam esconder suas dores e deméritos a todo tempo no biombo do perdão. Não adianta se banhar de perfume quando o corpo clama a emergência do banho. Eu primeiro senti a fragrância importada para depois cruzar com seu olhar.
Gorducha, com sobras de carne em todas as partes do corpo, curvava-se sobre o balcão pedindo fogo ao garçom. Eu me prontifiquei. Estiquei o braço e lhe fiz a gentileza. Ela agradeceu e em troca me ofereceu seu drinque. Vodka com Curaçau Blue, ela disse. Provei. A cor é ótima, eu disse. Rimos juntos.
De vestido vermelho berrante e muita maquiagem, minha ressentida da vez me lembrava uma pomba-gira quando ria  e uma viúva Porcina quando falava. Dançamos ao som do videokê que tocava o cancioneiro brega nacional. Eu lhe fazia as vontades. Enchia seu copo. Depois de muito beber, arrochei sua cintura roliça e colei minha boca na sua. Dali senti todo o amargor: filha única, fora criada com todo amor e com muito esmero, acreditou que era realmente uma princesa, mas aqueles que habitavam fora de seu castelo lhe apontavam a gordura e a ausência de curvas. Protagonizou a novela real “A gordinha rejeitada” e nunca mais abandonou sua personagem. O placebo para sua dor crônica era ludibriar os homens, prometendo-lhes sexo a troco de atenção, de cortejo e bajulação. Mas quando chegava a hora de cumprir sua parte do escambo, dava pinote e fazia o macho cair da certeza.
Terminado o beijo pude sentir o ranço viscoso de sua alminha pesada e ressentida.
Vamos pra algum lugar, eu disse. Estou nos dias, ela disse. Vamos só brincar, então... Fica mais um pouco que teu boquete é garantido. Assenti. Bebemos mais muitas. Saímos cambaleantes à procura de seu carro. Lá chegando, na solidão do estacionamento, cobrei minha paga. Tô passando mal, ela disse. Insisti. Abri a braguilha e ordenei. Tô passando mal, ela disse. Fechei a braguilha. Abri a porta do carro. Antes de sair soquei aquela cara gorda com força. Dei nela os murros endereçados a todas a fêmeas que me rejeitaram. Abri a bolsa. De sua carteira da Victor Hugo, afanei o dinheiro. Saí pelo estacionamento com sensação de bem-estar. Mais uma vez havia encontrado uma alma gêmea ressentida.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Jesus te ama mas não me peça nada emprestado

Minha vida aqui em Maria da Graça era uma calmaria, uma solitária bonança. Relativamente jovem e viúvo, recebo pontualmente a pensão deixada pela funcionária graduada do tribunal de contas. Não tivemos filhos. Minha mulher me deixou dinheiro, casa e solidão. A solidão eu divido com o nosso estimado melro Macalé, gogó de ouro. Os coroas da vizinhança viviam querendo comprar e barganhar o pássaro. Minhas negativas eram serenas e constantes. A história que vou narrar agora culmina com o fim da minha paz entoada pelo estridente canto de Macalé.
Sempre fui metódico como um animal. A morte de minha esposa tornou meus hábitos ainda mais constantes e previsíveis. Porque é mulher que tira a gente do prumo, que fica mudando a nossa rotina. Por isso não me caso de novo e nem boto fêmea dentro de casa. Todo mundo pensa que faço isso em memória da morta. Mentira. Não quero ter cobrança e aporrinhação. Pra me livrar da urgência da carne, recorro às casas de tolerância. Não tenho empregada. Eu mesmo faço minha comida, minhas compras. A passadeira e a faxineira aparecem uma vez na semana. Eu coloco a féria sobre a cômoda e as ignoro. Sou figura respeitada no bairro. E os colegas do bar se comprazem em beber comigo. Minha vida é assim, quer dizer, era. Eu escrevia o roteiro dos meus dias. Até que, um dia, eles chegaram.
Ocuparam a casa vizinha. Colada à minha. Um clã completinho: tinha até vó, até sogra. Sem contar o básico: papai, mamãe e uma parelha de filhos. Por eu ser o vizinho mais próximo, recorriam a mim para pedir emprestado todo tipo de coisa. Desde de martelo até uma xícara de açúcar. Apesar de ter meu sossego estremecido  pelos insistentes toques na campainha, eu era sempre solícito. Fizeram lá uma comilança de boas vindas que chamaram de culto de ação de graças. Eram crentes os desgraçados. O chefe da família era um pastor em ascensão. Tinha acabado de fundar O ministério Jesus é Rei. Fui intimado a beber refrigerante e a ouvir louvores vários. Saí de lá com uma azia desgraçada e uma baita dor de cabeça. Desde de então, passei a conviver com muitos “a paz do senhor”, “aleluia” e similares. Algo completamente tolerável se não fosse a insistência em tentarem me converter e me apresentar à Igreja. Todos os domingos, eu era acordado pela velhota de coque que batia palmas no portão, convocando para o culto. Diante das minhas negativas, a maldita exclamava “Não se pode negar um chamado de Deus!”. Eu, sem esboçar reação, agradecia e me esquivava. Mas a coisa persistia. Tive de responder os repetidos questionários sobre crença e religião. Respondia com falsa paciência e hipocrisia. Não tenho religião. Nem sei se acredito em deus. Não penso n`ele. A divindade só bate em minha porta quando morre parente ou conhecido. Pra mim a morte é o recado do deus que tento ignorar. Mas os vizinhos crentes e vivos queriam me arrebanhar cornetando profecias. Eu me fiz de mouco, até onde pude.
Durante a semana a família saía em diáspora para suas obrigações cotidianas. Mas a maldita velhota, permanecia em casa. E ouvia louvores no último volume. Aquilo perturbava meu juízo, roubava minha paz. Mas o que mais me doía era ver Macalé, o bom crioulo, sisudo e agitado. Passando de um poleiro a outro sem cantarolar. Mudei a gaiola de lugar, passei para os fundos da casa... A poluição sonora não fede nem cega, porém curra nossos ouvidos, arrebenta nossos tímpanos, arranca a dignidade do sossego. A sovaco sagrado inspirada pelos cânticos cafonas alimentava os pombos da área com miolo de pão. Os ratos alados enchiam o papo ao som de irmão lázaro e vinham cagar em minha varanda. Fiz pedidos e reclamações. Em troca recebi “santinhos” e promessas de oração.
Foi então que numa terça de carnaval, depois que a sessão jesus song chegara ao fim, fui até os fundos da casa para levar Macalé até a praça. Macalé estava caído, com as pernas duras e estiradas. O pretinho estava morto. Abri a gaiola e me pendurei no fio de esperança. Tive a certeza da tragédia. O bichinho não suportou mais um dia de tortura sonora e se afogou no em seu bebedouro. Preferiu a morte a ter seu canto abafado pelas músicas de gosto duvidoso.  Aquilo me deprimiu muito. Enterrei a única lembrança viva de minha esposa no quintal. Tive lágrimas nos olhos.
Acabado o carnaval e meu luto, decidi dar o troco. Fui para a região fronteiriça das propriedades e comecei a dar de comer aos pombos que também eram alimentados pela coroa de boa fé. Só que em vez de restos de pão, eu oferecia aos penosos uma singular iguaria: milho de pipoca borrifado com generosas doses de formicida. Os bichos se regalavam para o ciúme da velha. Só que, depois de engolir os grãos inaugurais, começavam a cambalear e a ensaiar voos débeis para logo ficarem se estrebuchando no solo, trilhando pra morte. A velha me chamou de demônio muitas vezes. A partir de então as perturbações evangélicas cessaram. Enfeitei meu sóbrio muro com enormes figuras de Zé Pilintra e Pomba-Gira. Me declarei inimigo. Dei a eles o que sempre quiseram porque, não tendo a certeza de suas verdades, precisam sempre de alguém que compartilhe desses devaneios ou de alguém que se oponha a sua fé. Deparando-se com outras crenças, confrontando os adoradores das entidades ditas por eles diabólicas, julgam-se mais diferentes dos homens, portanto, mais próximos de deus. Continuo sem ter religião. Não sou santo tampouco aceito que façam de mim um pobre diabo.

How how rancor

A mediocridade e autopiedade são mais pesadas quando estamos na presença de parentes melhor sucedidos. Diante deles, podemos mensurar nosso fracasso e ruminar secretamente o rancor. E não há reunião familiar mais propícia para colocar as dores na balança do que o aniversário natalício do Jota Cê. As pessoas, além de serem tomadas pela histeria consumista, ficam mais condoídas. Essa compaixão pontual é fajuta e fugaz, só serve mesmo de mote para a lavagem da encardida roupa familiar, daquelas vestimentas salpicadas de manchas e nódoas mal disfarçadas pelas cores da hipocrisia.
Detestava natal. Além de ter que gastar o Décimo terceiro suado com presentes para os dois filhos, tinha de aturar a mulher gerenciando sua grana e lembrando-o diariamente que a reunião na casa de Dinho – seu primo em segundo grau, mas irmão de criação – se aproximava. A esposa parecia se comprazer em comparar a vida abastada do bem-sucedido médico Doutor Alfredo com a existência de aperto que o marido mecânico e instrutor de autoescola. Delair olhava para o rosto contraído refletido no espelho enquanto escanhoava a bochecha quando seu celular tocou.
“Atende, mulher! Atende que deve ser minha amante! Ah ah”
“Amante?! Se tu arrumar uma amante, eu vendo pra ela meu lugar de esposa por cem reais! Atende logo isso aqui que é teu primo.”
Aborrecido com o desapego da mulher, Delair atendeu o celular tirando os resquícios de espuma que sobraram pelo rosto.
“Alô.”
“Fala, Dinho.”
“Como vai, primo?”
“Bem... E você?”
“Estou aguardando vocês aqui em casa hoje para a ceia. Vocês vêm, né?”
“Claro. Carmen não perderia isso por nada e as crianças também gostam...”
“Pois é, rapaz... Família reunida... Mas que queria te pedir um favor de irmão...”
“O que é?”
“Bem, o Papai Noel que eu contratei para chegar aqui meia-noite caiu doente de dengue e eu pensei em você para substituir. Quatrocentos reais, que tal?”
“Tá me chamando de gordo ou de passa-fome?”
“Deixa disso, mano! Você e alto e barrigudo é verdade, mas eu confio muito em você. É melhor dar quatrocentas pratas na tua mão do que na mão de estranhos.”

Olhou-se no espelho. A grana viria a calhar. Chegaria na festa já na hora da comilança, não teria que aturar os papos sobre ganhos salariais, carros importados e viagens à europa.

“Tá. Mas como é que faço pra pegar a roupa?”
“Estou aqui na porta da sua vila com tudo. Com o dinheiro inclusive.”

Delair consentiu. E pensou o quanto cretino era seu primo. Ela sabia dos dilemas financeiros. Fez uma proposta irrecusável para os padrões de um profissional liberal semi-empregado. Vestiu a bermuda, calçou as havainas e respondeu ao interrogatório da mulher que frigia rabanadas com um tapa safado na bunda.

“Homem doido!”

De frente para o portão, Dinho esperava com duas sacolas grandes de papelão sobre o capô do carro zero quilômetro. Apertaram-se as mãos. Delair recebeu dois tapinhas no ombro e oito notas de cinqüenta reais. Ouviu uma dúzia de recomendações, ouviu também que os presentes das crianças estavam lá, a postos, sob a árvore de natal. Ao voltar pra casa, ouviu novo interrogatório da mulher. Em cochicho, Delair explicou a situação. De cenho franzido, a esposa começaria a vociferar quando foi surpreendida pelas duas onças estampadas nas notas.
“Tome um táxi com as crianças. Guarde o troco para comprar algo legal pra você. Alguma coisa que não te lembre a cozinha e nem o mau marido que sou.”

A mulher sorriu. Dependurou-se no pescoço de Delair, guardou o dinheiro entre os seios e correu para o fogão para salvar a última leva de rabanadas de serem queimadas. Queria manter a tradição de produzir as “melhores rabanadas da família”, conforme diziam as dondocas da zona sul.

Assim que viu a família tomar o táxi, Delair se travestiu de papai noel. Só em vestir a calça e botar os sapatos, suou todas as brahmas que viria a tomar. Ruminou as lembranças antigas da época dos extintos hi-fi, quando seus “irmãos” iam calçados com os estilosos pisantes all star enquanto ele se apertava nos sapatinhos de crisma que Dinho havia usado um ano antes. Olhou-se no espelho. Estufou ainda mais a barriga e gritou Rou rou rou. Passou longe do gargalhar do bom velhinho, mais pareceu o som gutural de alguém que pragueja. Saiu da vila em direção ao seu Voyage. Teve de parar para atender às crianças da vizinhança e tirar fotos.

Chegou cedo, estacionou o carro de frente para o prédio sede do festejo natalino. Destapou o isopor sobre o banco do carona e abriu a primeira das doze latinhas. Enquanto consumia da cerveja em sôfregas goladas, observava as pessoas que chegavam ao prédio e ia reconhecendo os parentes e pensando em sua atuação diante da família reunida. O álcool ajudava a avivar o passado e abria os portais do ressentimento, sentimento que lhe era muito caro, o seu único patrimônio. Pegou o celular e ligou para o parente anfitrião. Este lhe disse que já podia subir. Antes de desligar, Papai Noel arrotou sonoramente para que o outro ouvisse. Mirava-se no espelho do elevador, ajeitava a barba, cuidava em estufar a barriga para se fazer convincente diante dos olhares curiosos dos menores.

Rompeu a sala com em alarido uníssono. As crianças se corriam para tocá-lo, as mulheres incentivavam os pequenos. Os homens cuidavam em repetir as velhas piadas e em desmoralizar o velho Noel. Eis que Papai Noel clama por atenção.
“Feliz Natal! Tomem aqui os presentes!”
Começou a atirar toda a sorte de roupas e cacarecos velhos que guardava dentro do saco.
“Isso tudo são artigos de segunda mão com que meu querido primo Alfredo, Alfredíssimo, presenteou a mim e a minha família no último ano. Para retribuir tamanha caridade, estou devolvendo tudo na frente de todos. Quero ainda agradecer a meu querido irmão de criação pela festa que promove; festa esta a custa dos muitos anjinhos que mandara ao céu. Festa à custa de muitos abortos.”
Atônitos os convivas se entreolhavam sem bem saber o que fazer. Algumas mulheres se julgando sensatas tiraram as crianças da sala. A esposa do Papai Noel parada estava e parada ficou. Conhecia bem o marido. Qualquer tentativa de dissuadí-lo seria retribuída com violência. Dois varões se prontificaram em segurar Delair, que imediatamente puxou um 38.
“Deixa eu falar nesta porra de festa! Este Alfredíssimo que está bancando o rega-bofe não vale a merda que caga. É um carniceiro. Quando ele diz que me tem como irmão é justo porque não sou seu irmão. Sou apenas o filho da serva que limpou sua bunda sem receber salário por isso. Sou apenas filho da mulher que trabalhou para esta família anos a fio sem receber qualquer benefício. Depois que minha mãe morreu, a falecida Dona Odete decidiu me criar para remir seus pecados. E me criou como um ente menor, como uma criança de segunda. O Alfredo pai, que o diabo o tenha, muitas vezes me xingou de filho da puta, muitas vezes me humilhou por conta da minha origem. Eu não sou irmão de ninguém nesta merda de família, nunca fui! O laço que une esse povo a mim é a culpa. E só!”
O mal-estar havia se espalhado pela casa. Delair arrancou o capuz e a barba e jogou arma de brinquedo no chão. Alfredo pensou em dar uns bofetes no irmão postiço, mas desistiu quando lembrou que não eram mais crianças e que o braço tatuado de Delair era duas vezes o seu. Limitou-se a vociferar
“Filho da Puta!”
Delair, sem se voltar, respondeu:
“Suas palavras são bala de festim. Daqui pra frente todos meus natais serão menos infelizes. A máscara do teu caráter caiu. O canalha é você. Feliz Natal.”

Antes de partir em retirada atrás do marido Noel, a esposa passou a mão na bandeja das rabanadas que ainda não tinha sido tocada.