sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O ronco do rancor

Obrigado, senhor Rancor.
Agradeço por teres me levado para tão longe.
Nessa viagem, foste autocomburente.
O barulho que fazias era apenas o ronco do motor.
Agora que cheguei até aqui.
Agora que só ouço silêncio.
Não preciso mais de ti.

Não me tomes por ingrato.
Gratidão rima com obrigação.
Não fui eu quem o abandonou.
Foi o ressentimento que se acabou.
Adeus, senhor Rancor.


domingo, 7 de agosto de 2011

Introdução do livro Quando Ronca o meu Rancor

“Guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”. A frase atribuída a William Shakespeare apresenta com muita propriedade a ideia de que o rancor, a mágoa, o ressentimento e afins são sentimentos autodegenerativos. O aforismo do dramaturgo bretão justifica a culpa e a condenação sofridas por muitos rancorosos já que a lógica senso-comum se desdobra da seguinte maneira: O ressentimento é algo que me traz prejuízos. Sendo assim, devo fazer de tudo para me livrar dele, pois caso eu venha contrair uma doença degenerativa, todos irão me culpar por ser o causador de minha própria desgraça. Além disso, caso eu confirme minhas mágoas e negue o perdão, estarei estigmatizado por ir de encontro a uma das mais elementares ideias cristãs. Por tudo isso, mesmo que eu não consiga me libertar do rancor, é melhor escondê-lo.
Saiamos da superfície para descer até a escura masmorra. Dentre os sentimentos verbalizados e já identificados por alguma etiqueta que chamamos de “palavra”, o rancor talvez seja o menos valido. É isso que constato ao me deparar com o fato de que raras pessoas se assumam rancorosas. Ainda que o sejam, preferem esconder o ressentimento como se ele fosse um motivo para se envergonhar. Sou diferente. Assumo meu rancor. Discuto demoradamente sobre ele. Faço isso porque o rancor é também definido como ódio profundo não expresso, como uma besta enjaulada em nosso peito que ruge pela liberdade. Sendo assim, exibir o rançoso sentimento é uma forma terapêutica de mitigá-lo, de tornar mais serena a fera reclusa.
Creio que o rancoroso deve se livrar também do estigma da culpa. O algoz que aplica 13 chibatadas em um prisioneiro fatalmente irá se esquecer do ato cruel. Contudo, aquele que teve o couro rasgado pelos golpes do chicote carrega o queloide na alma por muitos anos. Em suma, quem bate costuma esquecer; já quem apanha jamais esquece. O pesar talvez tenha origem na permissividade que se teve diante do agressor. Não nos perdoamos e nos culpamos por termos permitido sermos sacaneados uma ou duzentas vezes. Não se sinta culpado. Não sinta remorso. Não sinta remordimento. Foi o outro que não permitiu que você gostasse dele.
Perdoar não significa se libertar dos executores. Imagine um sujeito que pisa em seu pé. Ele se desculpa, mas dá a mesma pisadela em seu dedão calejado sempre que tem oportunidade. Nesse caso, perdoar é deixar-se humilhar, é permitir ser maltratado. Então qual solução para impedir que o rancor seja um sentimento nocivo que carcome o espírito e faz brotar um tumor nas entranhas? Muito embora eu não seja um guru da autoajuda, creio que a solução seja condenar os desafetos ao exílio. Devemos afastar de nossa existência todo aquele que nos faz um recorrente mal. Mantê-los por perto na esperança de aplicar um revés ou que se tornem benfazejos nada mais é do que aliviar ventre na latrina e ficar encarando os dejetos. A matéria fecal e o passado não têm serventia. Já saíram de você; já passaram. Todavia é preciso coragem, pois a tão cultuada gratidão, os laços de parentesco, a sede por vingança e arroubos de culpa são grilhões que muitas vezes prendem as vítimas aos seus algozes. É necessária a tenacidade de um mártir para escapar do claustro.
Os rancorosos que figuram nesses esboços narrativos são personagens que encarnam o nefasto sentimento de inúmeras maneiras. Todos eles estão aprisionados nos agravos do passado. Eles preferem se abraçar aos seus rancores (como diria João Antônio) porque é a único bem que lhes resta. Exilam-se na sombria ilha dos ressentidos. Apesar de habitarem no mundo da ficção, as figuras que aqui aparecem são mais verdadeiras do que seus pares do mundo dito real. Tais personagens não se preocupam em abafar o ronco do rancor.  

domingo, 3 de julho de 2011

Meu Querido Canalha*

Canalha. Tu finges ser um andrajoso que mendiga afeto quando na verdade não passa de um cigano que andarilha pelo corpo das fêmeas em busca de diversão. Brincas, brincas e, depois que te esbaldas, livra-te delas como se fossem um brinquedo velho. Guardas lembranças diminutas para montar teu interminável caleidoscópio do universo feminino.
Cafifa. Semeias ilusões, prometes sem garantir. Fazes com que as moças hipotequem toda a carga afetiva e em troca oferece moeda sentimental putrefata. O produto desse escambo infame é a dor alheia. Tu te vais com a lástima de nada poder edificar e deixas apenas um alicerce onde estão depositados escombros.
Calhorda. Não largas o osso. Não dispensas mulher alguma. São elas que, por força maior, abandonam-te. Levam para longe a verborragia reclamona e a culpa de terem errado. O mesmo dedo dedo indicador de extraída cutícula e unha impecável que te aponta a vileza é o dedo podre que indica a ti como melhor opção.
Cafajeste. Desbravas os corações com a mesma fúria que penetras os corpos. Porém, não passas da fase inicial. Abandonas tudo no começo para deixá-las com o agônico sabor do "como seria?". 
Ainda assim, meu canalha, eu te amo. Porque essa voz que te fala também é tua e essa tua condenada inquietude é igual parte de mim
*Meu querido canalha é título de uma antologia de contos (que nunca li) sobre cafajestes amorosos.

sábado, 7 de maio de 2011

Pé da Boba

Conselho de classe. Se tomássemos ao pé da letra cada palavra que compõe o título dado à reunião, teríamos uma resolução conjunta sobre os assuntos concernentes à sala de aula. Porém, a reunião que sempre nos rouba um bom naco do fim de semana não resolve nada e em nada ter a ver com os elementos que formam o corpo docente. Como já sei o que me espera naquele auditório, tomo um mandrix acompanhado de uma dose generosa de uísque cowboy. Escovo os dentes com a paciência de Jó. Passo a fita dentifrícia em todas as frestas. Sinto os gosto inapetente da limpeza bucal. Óculos Ray-Ban e perfume importado. Barba loira por fazer pra ficar com cara de sábado de sol.
O professorado reunido. Ela entra com a diretora gorducha. Propõe mais uma daquelas dinâmicas ridículas que mais constrange do que divertide. Ao final daquela brincadeira medonha, segue um palavrório com frases pré-moldadas. Educação é amor, educação é troca afetiva, seduzir o aluno, ser tolerante... E escola cobra a bagatela de mil e duzentos reais por cabeça... Sento próximo ao professor Calebe, velho depravado. Em cochicho, comenta os atributos glúteos e mamários das professoras. Ouço tudo em silêncio.
Lança-se o carômetro em data show. Essa vai, esse não vai. Esse tem probleminha. Aquela foi violentada pelo tio-avô cadeirante. Aquele é bom e beltrano também. Vão rotulando as pessoas com a etiqueta aluno. A diretora quer empurrar todo mundo para o ano letivo seguinte. Os professores muito compromissados se enervam: Passa comigo, não! Passa comigo, não!
A boba é posuda. Vestida com uma elegância que expõe a beleza em bandeja de prata. Quase tudo coberto. Só revela o necessário. Os pés. Pés 35. Um 35 tão formoso, tão harmonioso que passa a número redondo. Pezinhos ricos em curvas. Dedos esculpidos que exibem unhas cuidadosamente pintadas em sintonia cromática com as sandálias. Ela me chama. Observa a quantidade incomum de notas vermelhas. Vermelho é o sangue, vermelha é paixão, vermelha é essa boca que me fala, vermelho é quase a cor desse esmalte. Diz que eu preciso tentar uma aproximação com os alunos porque são turmas com defict de aprendizagem. Sugere estratégias. Concordo com tudo. Chuparia cada um daqueles dedos como se fosse o mais fino acepipe. Aqueles dedinhos me fariam salivar, implorar por pisadelas em um português infâme: Pisa neu! Ela descruza as pernas. Eu remexo nos diários e faço o movimento nervoso de ir e vir com a ponta da caneta retrátil. Ela cita os teóricos da educação. Uma professorinha encorujada resmunga que assim não vai dar pé. Dá pé, sim. A boba se arvora no discurso da educação libertadora. Lá do alto ela é intocável, não entra em sala. Eu só olho pra baixo. Encaro aquelas extremidades que sustentam a boneca esnobe. Imagino aqueles pés maculados de lama, imundos. Eu os lavaria carinhosamente para depois secá-los com uma toalha branca e felpuda. Ela se levanta, passa para trás das bancadas para melhor explicar os gráficos expostos pelo data show. Os pés desaparecem. Vou ao fundo da sala para buscar um cafezinho. A professora de Artes mais sem graça que boneco palito diz gostar do meu perfume. Sorrio agradecido. 
Começam a distribuição das avaliações do corpo docente. Apesar do desempenho medíocre de meus alunos, sou bem avaliado. Não entendo o porquê. Boa parte dos docentes fica se remexendo de raiva, balançando a cabeça em discordância. Fim da reunião. Mestre Calebe chega até mim. Diz que tem regressões quando olha o decote da professora de Literatura. Viaja até os seus imemoriais anos lactentes. Feliz o rebento que mamará naquelas tetas!, profetiza. Convida para um chope  com os colegas. Dou-lhe dois tapinhas no ombro e agradeço:
"Não bebo, professor."

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Delator

"Professor, Se senhor tiver a curiosidade de um dia buscar no dicionário o significado da palavra delação, poderá encontrar como sinônimo denúncia. Desta sinonímia discordo totalmente. Os senhores Aurélio e Houaiss deveriam ler menos, pesquisar menos e viver mais. Assim entenderiam que as palavras vivem em seus usos e não estanques na ordem alfabética do pai dos burros."

"Sei que denúncia não é o mesmo que delação. Denunciamos algo que sabemos ser ilegal, uma atitude nociva à sociedade ou a um indivíduo. Para denunciar, não é necessário que estejamos infiltrados entre criminosos e corruptos. Denunciamos à distância... Já a delação tem algo de espúrio e antiético. O delator muitas vezes se disfarça de criminoso para buscar provas e testemunhar contra os infratores. Ou então delata porque é contrariado, porque não tira todas as vantagens do esquema. A delação é tão baixa que para ela há inúmeros outros termos que lhe servem de tabuísmos. E tais expressões a ela relacionadas tornam seu significado ainda mais denso. Alcaguetagem, deduragem, dedo de gesso, X9, dedo de seta, dedo-duro..."

"Muito bem, Professor. Vejo que o senhor tem a total noção de que se tratam de conceitos distintos. Sendo assim, haverá de convir que o aluno em questão fez uma denúncia e não uma delação."

"Discordo. Devem ser levados em conta uma série de fatores. Em primeiro lugar, o aluno "denuncista" tem comportamento nada exemplar. Boceja alto na hora da explicação, não faz nenhuma atividade individual e apenas assina o nome nos trabalhos em grupo. Conversa o tempo todo. Alvejou a professora de Artes Plásticas com uma borracha. Mata aula. Atende o celular em sala. Comete uma série muito sortida de indisciplinas. Em vez de se concentrar no execício, ficou me chamando por mímica e apontando com o lábio inferior para a aluna que estava no fim da sala."

"Os erros dele não corrigem o erro daquela jovem."

"Desenhar um coração com caneta marca-texto na parede é algo diminuto perto do rosário de problemas que  o aluno apresenta."

"Pichar é uma infração grave que deve ser punida com todo rigor!"

"Em segundo lugar, o que a aluna desenhou na parede nada tem de pichação. E por fim, o alcagueta só chamou minha atenção para isso porque sabia que seria por mim advertido. Apontou para a garota justo quando eu me aproximava de sua mesa. Fez isso para driblar minha atenção."

"Ok, professor. Contudo, o senhor não pode contestar a punição  que está prevista no estatuto interno desta escola. Somos uma escola pública modelar, não podemos nos igualar as demais escolas onde tudo de ruim acontece."

"Ficamos rebaixados ao mesmo nível das demais escolas quando queremos punir o que está na superfície, sem buscar corrigir aquilo que não é aparente e que, por não aparecer, é muito mais daninho..."

"Onde o senhor quer chegar com isso?"

"Ao seguinte ponto: Não é justo "punir de maneira exemplar" uma boa aluna que desenhou um coraçãozinho na parede usando uma caneta marca-texto ainda mais quando ela foi dedurada pelo pior aluno da sala que quis apenas desviar o foco. São os piores alunos que deduram. Eles sentem inveja e têm uma autoestima rastejante. Deduram o colega porque não conseguem aprender e buscam nisso uma maneira de sabotar aulas e se sentirem menos maus alunos. E convenhamos: os verdadeiros pichadores fazem isso nas paredes dos banheiros longe da vista de todos. Infligir castigo a essa menina equivale a premiar o delator."

"Muito bem, Professor. Levarei em consideração essa conversa. Pode ir. E, por favor, peça para os alunos entrarem ."

***
"A senhora sabe quanto dinheiro custa pintar toda essa escola? Por acaso a senhora tem por hábito desenhar corações na parede de sua casa? Trate de pegar uma esponja e sabão com o pessoal dos serviços gerais porque a senhora vai limpar a sujeira que fez na vista de todos. Depois volte aqui para tratarmos da sua advertência."

"Quanto ao senhor, espero que melhore suas notas e seu comportamento. Faz muito bem em zelar pela a limpeza da escola."


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bom de Briga

A blindagem do fraco é prostrar-se na inferioridade. É fazer de sua fraqueza um passe-livre para transitar no território fortificado. É cômodo ser o fraco,  o vitimado, o bullyinado. Difícil é invadir um espaço já demarcado. Mas, quando o fazemos, ganhamos, no mínimo, respeito.
Naquela escolinha rural, o forte era Dilsinho. Viu em mim o recém-chegado que teria de pagar o preço por ser forasteiro, por chiar na pronúncia dos "s" finais. No caminho para a sala, gritou: "carioca da bunda choca!" Revidei: "Choca é a galinha da tua mãe!" Dilsinho partiu em minha direção muito disposto. Com a musculatura trabalhada pela lavoura, acertou-me muitos cachaços que eu revidei com menor eficiência. Em meu primeiro dia de aula, adentrei a sala com a cara vermelha e beiço rachado.
A professora, a quem chamávamos de Dona Santa, era uma senhora obesa e gritona. Usava de três métodos para punir os alunos bagunceiros e com dificuldades de aprendizagem: cadernadas, beliscões e saraivadas com uma peça de metal que usava para apontar no quadro. Meu bom aproveitamento e discrição retardaram as primeiras agressões de Dona Santa. Até que um dia ela me perguntou: "O que comeu no café?" "Pão e café-com-leite.", respondi. Ela gritou: "Se diz leite com café!" "Qual a diferença?" Para deleite de muitos, minha pergunta foi motivo suficiente para duas cadernadas no coco.
Minha inteligência de menino alfabetizado pela vó causava inveja nos colegas. Dilsinho e sua patota se aprumaram na hora da merenda. Eu tinha um caneca de mingau quente à mão. Tratei de atirar o conteúdo nas fuças de meu inimigo. Os comparsas estancaram surpresos. Aproveitei a paralisia geral e cobri Dilsinho de chutes e socos. Formou-se plateia. Fui suspenso. A partir de então ganhei seguidores e tomei conhecimento de meu poder.
Minha força não era física obviamente. Meus pais tinham uma condição financeira superior se comparada a dos habitantes da região. Luz elétrica, rádio e televisão. Convidava os colegas para irem à minha casa brincar. No final da tarde, minha mãe servia guloseimas que as crianças devoravam sem cerimônia. A farta hospitalidade ajudou a formar meu grupo de amigos: Os irmãos Angeli e Erli, André Boi e Fimose. Este último era assim chamado porque sua cabeça era colada entre os ombros. Pescoço ali parecia não existir. Apesar do apelido, Fimose não era por nós achincalhado; era digno de uma nesga de sol.
Dilsinho e seu bando passaram a me respeitar e aquela rixa foi sublimada. Medíamos força nas partidas de futebol, no bafo, na disputa de gudes. Volta e meia a gente se topava de atiradeira na mão à caça de passarinho. Mal nos falávamos.
Quando iniciei o terceiro ano ginasial, tinha minha popularidade elevada às alturas. Bom de bola, inteligente, boa praça e uma marrinha caricata. A combinação me rendeu o apelido óbvio: carioca. Com minha identidade formada, espaço conquistado e amigos, ir para escola tornara-se um prazer. 
Satisfação maior ainda encontraria  fora da escola. Marciana, aluna repetente, com considerável devassagem idade/série, trabalhava feito homem na propriedade de sua família. Seu Pai, Seu Inácio, só bebia e reclamava da doença que lhe comeu a perna. A mãe cuidava do caçula e fazia doces para pôr à venda. Marciana tinha de fazer um trabalho alienígena para as mulheres locais. O pasto por onde tocava o gado era próximo à minha casa. Com pena, a mãe mandou que eu levasse um pedaço de bolo para ela. Quando ao curral cheguei pude bem ver suas costas sardentas enquanto ela separava o bezerro da vaca. A cebeleira desgrenhada, o rosto todo marcado por sardas, o corpo insinuante coberto por um vestido surrado exerceram sobre mim um certo fascínio. "A mãe mandou pra tu." "Ocê subiu  até aqui só pra trazê esse bolo pra eu?" "É".
Desde então, nossos encontros pelo pasto se tornaram regulares. Na escola, o contato se restringia a olhares. Não demorou mês, Marciana rolou comigo pelas moitas de capim braquiária. Tirava a roupa de baixo e levantava a saia. Exibia o sexo coberto pela relva castanha. Nossas tardes de inverno se acabavam  naquele primitivo folguedo. A mãe já atinada, deixou de enviar os quitutes. E constatando que eu voltava pra casa com a roupa pejada de carrapicho e o corpo castigado pelos carrapatos, tratou de reclamar com o Pai. O Pai se riu: "Êta ferro! Deixa o menino! Isso é sanha de garrote atrás de novilha mojando!"  Estava mesmo encegueirado. Neguei até convite de férias no Rio.
Na escola, minha postura mudou. Menos piadista, mais sisudo. Agarrei no pescoço de André Boi que tentou levantar a saia de Marciana na fila da merenda. Nunca mais o convidei para minha casa. Corria para casa pensando naquele corpo marcado de sarda e carrapato. 
Dilsinho observou que eu estava vulnerável. Descobriu minha Kriptonita. "Ocê tá de namoro com a vaca malhada, heim?" Nem respondi. Saímos no braço. Minha ira era tanta que compensou minha falta de robustez. Nova suspensão, dessa vez, para ambos.
Depois do incidente, o boato se espalhou de maneira contínua como o sangue que minava de meu nariz e se espalhava lentamente pelo branco da camisa. Marciana passou a se esquivar. Passou a subir para o curral acompanhada do irmão menor. Recusou a broa de fubá que roubei da despensa. Senti a dor da perda. A dor maior, o desgosto mais amargo eu senti quando flagrei Marciana subir na garupa da bicicleta de Dilsinho na hora da saída. Caí em tristeza profunda. Fiquei uma semana sem ir à escola, vagando pelas trilhas e pastagens incertas. A mãe percebia minha depressão, era   toda atenção para comigo e comentou que meu corpo estava livre de parasitas.


segunda-feira, 28 de março de 2011

Prefácio do livro Desenrolo

No seu livro de estréia Viddal de Souza faz referência a aspectos marcantes da literatura brasileira.
Mas usa um tom contrastante, como não podia deixar de ser. Já o seu Magistrício Ateneu se passa na era do elogio do achincalhe, da piadística, da luta entre o deboche e o bom humor, pois o professor Azedo precisava mais do que da autoridade que o cargo e a função lhe asseguravam para estabelecer uma relação eficaz entre ele e os alunos de uma classe como tantas outras que ocupam as salas de aula nos anos de 1990, 2000 e assim por diante.
Tomando da pena, nosso estreante autor moderniza o assim chamado contexto. Sai do sério e contra-ataca com as mesmas armas. A crítica feroz contrasta com a elegante reação dos professores da tradição literária brasileira. Sem saudosismo e sem teoria, Viddal faz a sua narrativa, que debocha da frustração do mestre, do respeito antiquado e da teoria ineficaz.
Num cenário suburbano, cria com estilo um tipo de ironia que contrasta até mesmo com mestre Nelson Rodrigues, que foi o mais cruel crítico da hipocrisia da elite que torce o nariz para as chamadas camadas menos favorecidas. Realismo tratado finamente é o que teremos nestas páginas. Rodriguianamente, o professor sente-se um “um palhaço, um bufão maldito” e lembra dos seus sonolentos tempos acadêmicos em que professores antipáticos e sem carisma eram tolerados, desde que esnobassem e arrotassem saberes.
Nelson Rodrigues é revisitado no conto “De mãe pra filha”. Primeiramente na epígrafe, que lembra os momentos mais radicalmente pornográficos de Nelson. Em seguida na invasão da privacidade feminina, quando Viddal cria uma teoria que associa menstruação e banho frio matinal. É quase um desrespeito, que se torna delicioso nesses tempos de hipocrisia disfarçada de politicamente correto. E Vidal, por fim, confessa sua predileção pelo “dramaturgo do Leblon”.
Esse último conto longo, rico em personagens – alguns dignos de Rubem Fonseca, pelas suas características físicas grotescas e pela crueldade que molda o enredo – foi deixado para o final, provavelmente, para ser deliciosamente degustado, como o pudim oferecido por Moema ao protagonista. Tudo gira em torno da obsessão do personagem principal pela prática da “preferência nacional”, ou seja, do sexo anal. As peripécias suburbanas se sucedem. A linguagem varia hipocritamente entre descrições quase médicas da anatomia anal feminina e a mais pura exposição do que os homens menos refinados da sociedade carioca fantasiam a respeito das fêmeas que pretendem possuir ou que possuem.
Ao final da leitura, afora as influências rodriguianas e fonsequianas, fica no leitor a sensação de ter assistido ao desenrolar das vidas suburbanas. Ou das dramáticas mortes suburbanas, ali, na rua, com plástico preto pra cobrir o presunto, velas acesas e público.
Viddal é desses narradores que quase colocam suas histórias numa tela real de cinema. No caso dele, cinema suburbano, naturalmente.
Ulysses Maciel

Contracapa do livro Desenrolo

O livro Desenrolo é um punhado de histórias que vai levar o leitor à lona. O Manual de Boas Maneiras para Meninas, de Pierre Louÿs, encontra-se na novela de “Mãe para Filha” em que o tom mordaz, sarcástico e ácido modula as ações das personagens. A matreirice à espreita no conto-título deste volume faz nos perguntar ao final da leitura: “Tem desenrolo?”. A vida páginas afora afirma que sim. Mas qual o preço? Este pode ser medido, pesado e tarifado ao longo dos contos da valente ficção que se dispõe nesse livro.
Mariel Reis