sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Delator

"Professor, Se senhor tiver a curiosidade de um dia buscar no dicionário o significado da palavra delação, poderá encontrar como sinônimo denúncia. Desta sinonímia discordo totalmente. Os senhores Aurélio e Houaiss deveriam ler menos, pesquisar menos e viver mais. Assim entenderiam que as palavras vivem em seus usos e não estanques na ordem alfabética do pai dos burros."

"Sei que denúncia não é o mesmo que delação. Denunciamos algo que sabemos ser ilegal, uma atitude nociva à sociedade ou a um indivíduo. Para denunciar, não é necessário que estejamos infiltrados entre criminosos e corruptos. Denunciamos à distância... Já a delação tem algo de espúrio e antiético. O delator muitas vezes se disfarça de criminoso para buscar provas e testemunhar contra os infratores. Ou então delata porque é contrariado, porque não tira todas as vantagens do esquema. A delação é tão baixa que para ela há inúmeros outros termos que lhe servem de tabuísmos. E tais expressões a ela relacionadas tornam seu significado ainda mais denso. Alcaguetagem, deduragem, dedo de gesso, X9, dedo de seta, dedo-duro..."

"Muito bem, Professor. Vejo que o senhor tem a total noção de que se tratam de conceitos distintos. Sendo assim, haverá de convir que o aluno em questão fez uma denúncia e não uma delação."

"Discordo. Devem ser levados em conta uma série de fatores. Em primeiro lugar, o aluno "denuncista" tem comportamento nada exemplar. Boceja alto na hora da explicação, não faz nenhuma atividade individual e apenas assina o nome nos trabalhos em grupo. Conversa o tempo todo. Alvejou a professora de Artes Plásticas com uma borracha. Mata aula. Atende o celular em sala. Comete uma série muito sortida de indisciplinas. Em vez de se concentrar no execício, ficou me chamando por mímica e apontando com o lábio inferior para a aluna que estava no fim da sala."

"Os erros dele não corrigem o erro daquela jovem."

"Desenhar um coração com caneta marca-texto na parede é algo diminuto perto do rosário de problemas que  o aluno apresenta."

"Pichar é uma infração grave que deve ser punida com todo rigor!"

"Em segundo lugar, o que a aluna desenhou na parede nada tem de pichação. E por fim, o alcagueta só chamou minha atenção para isso porque sabia que seria por mim advertido. Apontou para a garota justo quando eu me aproximava de sua mesa. Fez isso para driblar minha atenção."

"Ok, professor. Contudo, o senhor não pode contestar a punição  que está prevista no estatuto interno desta escola. Somos uma escola pública modelar, não podemos nos igualar as demais escolas onde tudo de ruim acontece."

"Ficamos rebaixados ao mesmo nível das demais escolas quando queremos punir o que está na superfície, sem buscar corrigir aquilo que não é aparente e que, por não aparecer, é muito mais daninho..."

"Onde o senhor quer chegar com isso?"

"Ao seguinte ponto: Não é justo "punir de maneira exemplar" uma boa aluna que desenhou um coraçãozinho na parede usando uma caneta marca-texto ainda mais quando ela foi dedurada pelo pior aluno da sala que quis apenas desviar o foco. São os piores alunos que deduram. Eles sentem inveja e têm uma autoestima rastejante. Deduram o colega porque não conseguem aprender e buscam nisso uma maneira de sabotar aulas e se sentirem menos maus alunos. E convenhamos: os verdadeiros pichadores fazem isso nas paredes dos banheiros longe da vista de todos. Infligir castigo a essa menina equivale a premiar o delator."

"Muito bem, Professor. Levarei em consideração essa conversa. Pode ir. E, por favor, peça para os alunos entrarem ."

***
"A senhora sabe quanto dinheiro custa pintar toda essa escola? Por acaso a senhora tem por hábito desenhar corações na parede de sua casa? Trate de pegar uma esponja e sabão com o pessoal dos serviços gerais porque a senhora vai limpar a sujeira que fez na vista de todos. Depois volte aqui para tratarmos da sua advertência."

"Quanto ao senhor, espero que melhore suas notas e seu comportamento. Faz muito bem em zelar pela a limpeza da escola."


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