segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

How how rancor

A mediocridade e autopiedade são mais pesadas quando estamos na presença de parentes melhor sucedidos. Diante deles, podemos mensurar nosso fracasso e ruminar secretamente o rancor. E não há reunião familiar mais propícia para colocar as dores na balança do que o aniversário natalício do Jota Cê. As pessoas, além de serem tomadas pela histeria consumista, ficam mais condoídas. Essa compaixão pontual é fajuta e fugaz, só serve mesmo de mote para a lavagem da encardida roupa familiar, daquelas vestimentas salpicadas de manchas e nódoas mal disfarçadas pelas cores da hipocrisia.
Detestava natal. Além de ter que gastar o Décimo terceiro suado com presentes para os dois filhos, tinha de aturar a mulher gerenciando sua grana e lembrando-o diariamente que a reunião na casa de Dinho – seu primo em segundo grau, mas irmão de criação – se aproximava. A esposa parecia se comprazer em comparar a vida abastada do bem-sucedido médico Doutor Alfredo com a existência de aperto que o marido mecânico e instrutor de autoescola. Delair olhava para o rosto contraído refletido no espelho enquanto escanhoava a bochecha quando seu celular tocou.
“Atende, mulher! Atende que deve ser minha amante! Ah ah”
“Amante?! Se tu arrumar uma amante, eu vendo pra ela meu lugar de esposa por cem reais! Atende logo isso aqui que é teu primo.”
Aborrecido com o desapego da mulher, Delair atendeu o celular tirando os resquícios de espuma que sobraram pelo rosto.
“Alô.”
“Fala, Dinho.”
“Como vai, primo?”
“Bem... E você?”
“Estou aguardando vocês aqui em casa hoje para a ceia. Vocês vêm, né?”
“Claro. Carmen não perderia isso por nada e as crianças também gostam...”
“Pois é, rapaz... Família reunida... Mas que queria te pedir um favor de irmão...”
“O que é?”
“Bem, o Papai Noel que eu contratei para chegar aqui meia-noite caiu doente de dengue e eu pensei em você para substituir. Quatrocentos reais, que tal?”
“Tá me chamando de gordo ou de passa-fome?”
“Deixa disso, mano! Você e alto e barrigudo é verdade, mas eu confio muito em você. É melhor dar quatrocentas pratas na tua mão do que na mão de estranhos.”

Olhou-se no espelho. A grana viria a calhar. Chegaria na festa já na hora da comilança, não teria que aturar os papos sobre ganhos salariais, carros importados e viagens à europa.

“Tá. Mas como é que faço pra pegar a roupa?”
“Estou aqui na porta da sua vila com tudo. Com o dinheiro inclusive.”

Delair consentiu. E pensou o quanto cretino era seu primo. Ela sabia dos dilemas financeiros. Fez uma proposta irrecusável para os padrões de um profissional liberal semi-empregado. Vestiu a bermuda, calçou as havainas e respondeu ao interrogatório da mulher que frigia rabanadas com um tapa safado na bunda.

“Homem doido!”

De frente para o portão, Dinho esperava com duas sacolas grandes de papelão sobre o capô do carro zero quilômetro. Apertaram-se as mãos. Delair recebeu dois tapinhas no ombro e oito notas de cinqüenta reais. Ouviu uma dúzia de recomendações, ouviu também que os presentes das crianças estavam lá, a postos, sob a árvore de natal. Ao voltar pra casa, ouviu novo interrogatório da mulher. Em cochicho, Delair explicou a situação. De cenho franzido, a esposa começaria a vociferar quando foi surpreendida pelas duas onças estampadas nas notas.
“Tome um táxi com as crianças. Guarde o troco para comprar algo legal pra você. Alguma coisa que não te lembre a cozinha e nem o mau marido que sou.”

A mulher sorriu. Dependurou-se no pescoço de Delair, guardou o dinheiro entre os seios e correu para o fogão para salvar a última leva de rabanadas de serem queimadas. Queria manter a tradição de produzir as “melhores rabanadas da família”, conforme diziam as dondocas da zona sul.

Assim que viu a família tomar o táxi, Delair se travestiu de papai noel. Só em vestir a calça e botar os sapatos, suou todas as brahmas que viria a tomar. Ruminou as lembranças antigas da época dos extintos hi-fi, quando seus “irmãos” iam calçados com os estilosos pisantes all star enquanto ele se apertava nos sapatinhos de crisma que Dinho havia usado um ano antes. Olhou-se no espelho. Estufou ainda mais a barriga e gritou Rou rou rou. Passou longe do gargalhar do bom velhinho, mais pareceu o som gutural de alguém que pragueja. Saiu da vila em direção ao seu Voyage. Teve de parar para atender às crianças da vizinhança e tirar fotos.

Chegou cedo, estacionou o carro de frente para o prédio sede do festejo natalino. Destapou o isopor sobre o banco do carona e abriu a primeira das doze latinhas. Enquanto consumia da cerveja em sôfregas goladas, observava as pessoas que chegavam ao prédio e ia reconhecendo os parentes e pensando em sua atuação diante da família reunida. O álcool ajudava a avivar o passado e abria os portais do ressentimento, sentimento que lhe era muito caro, o seu único patrimônio. Pegou o celular e ligou para o parente anfitrião. Este lhe disse que já podia subir. Antes de desligar, Papai Noel arrotou sonoramente para que o outro ouvisse. Mirava-se no espelho do elevador, ajeitava a barba, cuidava em estufar a barriga para se fazer convincente diante dos olhares curiosos dos menores.

Rompeu a sala com em alarido uníssono. As crianças se corriam para tocá-lo, as mulheres incentivavam os pequenos. Os homens cuidavam em repetir as velhas piadas e em desmoralizar o velho Noel. Eis que Papai Noel clama por atenção.
“Feliz Natal! Tomem aqui os presentes!”
Começou a atirar toda a sorte de roupas e cacarecos velhos que guardava dentro do saco.
“Isso tudo são artigos de segunda mão com que meu querido primo Alfredo, Alfredíssimo, presenteou a mim e a minha família no último ano. Para retribuir tamanha caridade, estou devolvendo tudo na frente de todos. Quero ainda agradecer a meu querido irmão de criação pela festa que promove; festa esta a custa dos muitos anjinhos que mandara ao céu. Festa à custa de muitos abortos.”
Atônitos os convivas se entreolhavam sem bem saber o que fazer. Algumas mulheres se julgando sensatas tiraram as crianças da sala. A esposa do Papai Noel parada estava e parada ficou. Conhecia bem o marido. Qualquer tentativa de dissuadí-lo seria retribuída com violência. Dois varões se prontificaram em segurar Delair, que imediatamente puxou um 38.
“Deixa eu falar nesta porra de festa! Este Alfredíssimo que está bancando o rega-bofe não vale a merda que caga. É um carniceiro. Quando ele diz que me tem como irmão é justo porque não sou seu irmão. Sou apenas o filho da serva que limpou sua bunda sem receber salário por isso. Sou apenas filho da mulher que trabalhou para esta família anos a fio sem receber qualquer benefício. Depois que minha mãe morreu, a falecida Dona Odete decidiu me criar para remir seus pecados. E me criou como um ente menor, como uma criança de segunda. O Alfredo pai, que o diabo o tenha, muitas vezes me xingou de filho da puta, muitas vezes me humilhou por conta da minha origem. Eu não sou irmão de ninguém nesta merda de família, nunca fui! O laço que une esse povo a mim é a culpa. E só!”
O mal-estar havia se espalhado pela casa. Delair arrancou o capuz e a barba e jogou arma de brinquedo no chão. Alfredo pensou em dar uns bofetes no irmão postiço, mas desistiu quando lembrou que não eram mais crianças e que o braço tatuado de Delair era duas vezes o seu. Limitou-se a vociferar
“Filho da Puta!”
Delair, sem se voltar, respondeu:
“Suas palavras são bala de festim. Daqui pra frente todos meus natais serão menos infelizes. A máscara do teu caráter caiu. O canalha é você. Feliz Natal.”

Antes de partir em retirada atrás do marido Noel, a esposa passou a mão na bandeja das rabanadas que ainda não tinha sido tocada.

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