Minha vida aqui em Maria da Graça era uma calmaria, uma solitária bonança. Relativamente jovem e viúvo, recebo pontualmente a pensão deixada pela funcionária graduada do tribunal de contas. Não tivemos filhos. Minha mulher me deixou dinheiro, casa e solidão. A solidão eu divido com o nosso estimado melro Macalé, gogó de ouro. Os coroas da vizinhança viviam querendo comprar e barganhar o pássaro. Minhas negativas eram serenas e constantes. A história que vou narrar agora culmina com o fim da minha paz entoada pelo estridente canto de Macalé.
Sempre fui metódico como um animal. A morte de minha esposa tornou meus hábitos ainda mais constantes e previsíveis. Porque é mulher que tira a gente do prumo, que fica mudando a nossa rotina. Por isso não me caso de novo e nem boto fêmea dentro de casa. Todo mundo pensa que faço isso em memória da morta. Mentira. Não quero ter cobrança e aporrinhação. Pra me livrar da urgência da carne, recorro às casas de tolerância. Não tenho empregada. Eu mesmo faço minha comida, minhas compras. A passadeira e a faxineira aparecem uma vez na semana. Eu coloco a féria sobre a cômoda e as ignoro. Sou figura respeitada no bairro. E os colegas do bar se comprazem em beber comigo. Minha vida é assim, quer dizer, era. Eu escrevia o roteiro dos meus dias. Até que, um dia, eles chegaram.
Ocuparam a casa vizinha. Colada à minha. Um clã completinho: tinha até vó, até sogra. Sem contar o básico: papai, mamãe e uma parelha de filhos. Por eu ser o vizinho mais próximo, recorriam a mim para pedir emprestado todo tipo de coisa. Desde de martelo até uma xícara de açúcar. Apesar de ter meu sossego estremecido pelos insistentes toques na campainha, eu era sempre solícito. Fizeram lá uma comilança de boas vindas que chamaram de culto de ação de graças. Eram crentes os desgraçados. O chefe da família era um pastor em ascensão. Tinha acabado de fundar O ministério Jesus é Rei. Fui intimado a beber refrigerante e a ouvir louvores vários. Saí de lá com uma azia desgraçada e uma baita dor de cabeça. Desde de então, passei a conviver com muitos “a paz do senhor”, “aleluia” e similares. Algo completamente tolerável se não fosse a insistência em tentarem me converter e me apresentar à Igreja. Todos os domingos, eu era acordado pela velhota de coque que batia palmas no portão, convocando para o culto. Diante das minhas negativas, a maldita exclamava “Não se pode negar um chamado de Deus!”. Eu, sem esboçar reação, agradecia e me esquivava. Mas a coisa persistia. Tive de responder os repetidos questionários sobre crença e religião. Respondia com falsa paciência e hipocrisia. Não tenho religião. Nem sei se acredito em deus. Não penso n`ele. A divindade só bate em minha porta quando morre parente ou conhecido. Pra mim a morte é o recado do deus que tento ignorar. Mas os vizinhos crentes e vivos queriam me arrebanhar cornetando profecias. Eu me fiz de mouco, até onde pude.
Durante a semana a família saía em diáspora para suas obrigações cotidianas. Mas a maldita velhota, permanecia em casa. E ouvia louvores no último volume. Aquilo perturbava meu juízo, roubava minha paz. Mas o que mais me doía era ver Macalé, o bom crioulo, sisudo e agitado. Passando de um poleiro a outro sem cantarolar. Mudei a gaiola de lugar, passei para os fundos da casa... A poluição sonora não fede nem cega, porém curra nossos ouvidos, arrebenta nossos tímpanos, arranca a dignidade do sossego. A sovaco sagrado inspirada pelos cânticos cafonas alimentava os pombos da área com miolo de pão. Os ratos alados enchiam o papo ao som de irmão lázaro e vinham cagar em minha varanda. Fiz pedidos e reclamações. Em troca recebi “santinhos” e promessas de oração.
Foi então que numa terça de carnaval, depois que a sessão jesus song chegara ao fim, fui até os fundos da casa para levar Macalé até a praça. Macalé estava caído, com as pernas duras e estiradas. O pretinho estava morto. Abri a gaiola e me pendurei no fio de esperança. Tive a certeza da tragédia. O bichinho não suportou mais um dia de tortura sonora e se afogou no em seu bebedouro. Preferiu a morte a ter seu canto abafado pelas músicas de gosto duvidoso. Aquilo me deprimiu muito. Enterrei a única lembrança viva de minha esposa no quintal. Tive lágrimas nos olhos.
Acabado o carnaval e meu luto, decidi dar o troco. Fui para a região fronteiriça das propriedades e comecei a dar de comer aos pombos que também eram alimentados pela coroa de boa fé. Só que em vez de restos de pão, eu oferecia aos penosos uma singular iguaria: milho de pipoca borrifado com generosas doses de formicida. Os bichos se regalavam para o ciúme da velha. Só que, depois de engolir os grãos inaugurais, começavam a cambalear e a ensaiar voos débeis para logo ficarem se estrebuchando no solo, trilhando pra morte. A velha me chamou de demônio muitas vezes. A partir de então as perturbações evangélicas cessaram. Enfeitei meu sóbrio muro com enormes figuras de Zé Pilintra e Pomba-Gira. Me declarei inimigo. Dei a eles o que sempre quiseram porque, não tendo a certeza de suas verdades, precisam sempre de alguém que compartilhe desses devaneios ou de alguém que se oponha a sua fé. Deparando-se com outras crenças, confrontando os adoradores das entidades ditas por eles diabólicas, julgam-se mais diferentes dos homens, portanto, mais próximos de deus. Continuo sem ter religião. Não sou santo tampouco aceito que façam de mim um pobre diabo.
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