quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Cabo Guilair:todo covarde se esconde atrás da autoridade (para o rei da blitz)

O mau-caratismo não brota de hora pra outra feito tiririca em horta abandonada. O caráter carunchado tem certidão de nascimento e história pra contar. Guilair brotou da babaca de uma mãe solteira que abrira as penas pra um camumbembe que conheceu na feira de São Cristovão. Passado o folguedo, o paraíba sumiu no mundo. A mulher jamais revelou o nome de seu sócio naquela falida empresa humana. Com cinco anos existência, Guilair foi deixado na casa de uns parentes. A mãe desapareceu. Dinha Socorro pegou o menino pra criar. Criou o menino feito um bicho, feito um porco estimado. Acorrentado ao pé da mesa da cozinha. O moleque Guigui era intimado a lavar a louça. O grude de fubá ficava numa tigela embaixo da mesa. A madrinha dizia que aquilo era pro bem dele; pra não ficar na vagabundagem da rua enquanto ela estava na lida. O cãozinho xodó também comia do angu; da mesma tigela de Guigui. Muito educado, xodó deixava o menino se servir primeiro. Com o tempo, o estimado cachorro passou a ser o primeiro comensal. Taludinho, Gui começou a fazer pequenas tarefas pela vizinhança. Podava os gramados, lavava os carros, Carregavas as sacolas para as donas-de-casa. Escondia uns caraminguás pra si e entregava o grosso da féria para a madrinha somítica. Na semana que completou 16 anos, o seu melhor amigo já cego, manco e de faro ruim bateu as patas. Dinha mandou enrolar o defunto em sacos plásticos e atirá-lo na caçamba do lixo. O moleque disse que não.Melhor era enterrar no quintal e por uma cruz de madeira, uma cruz em que as ripas lembrassem um osso. Malucou, moleque! Parece um retardado! Mania de achar que bicho é gente. O meu quintal não é cemitério de cachorro! Bicho não é gente?! Xodó era melhor pessoa que tu, sua bruxa! Ingrato! Dinha tentou acertá-lo com a vassoura. Guilair se esquivou, adentrou a cozinha. Agarrou-se ao pote das economias e fugiu de casa com a roupa do corpo. Ficou uns tempos vagando pelos quintais e condomínios em que prestava serviço. Até que uma dona que era enfermeira e tinha fissura por gatos – seu apartamento de dois quartos abrigava 14 felinos – decidiu acolher o garoto. Aquela gataria; a tempestade de cotões de pêlos, a inhaca de merda, aqueles miados... Fora a quase obrigatoriedade de ter que copular com a dona que não tinha zelo com a casa e não tinha asseio com o corpo que tornavam a vida do rapaz um calvário. Acordava cedo para fazer os biscates. À noite tomava banho no posto de gasolina e ia para o supletivo. Postergava o máximo para retornar pra casa. A dona dos gatos sofria com a toxoplasmose muito avançada. Dores de cabeça terríveis, lacunas de memória... meningoencefalite, disse o médico. A moribunda pediu que Gulair olhasse pelos gatos. Eram seus únicos herdeiros. Guilair chegou na casa. Encheu o tanque com água. Pegou um bichano de cada vez e pôs na gaiola de passeio. Afundou primeiro Alain Delon (todos tinham nomes de artistas do cinema). Só trazia a jaula para a superfície bem depois que o bicho parava de se debater. Enrolava a carcaça num saco preto de lixo e partia para outro. E fez assim 13 vezes. Com Marcelo Mastroianni, fez diferente. Agarrou o gato pelo cangote e o arremessou com a força que tinha pela janela do quarto andar. Gastando seis vidas, o gato foi de encontro a murada do prédio em frente e usou das garras para fazer a queda mais suave. Caiu de pé sobre a caçamba de lixo e desapareceu na escuridão. Guilair ficou arrependido de não tê-lo afogado como os outros.
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Cabo Guilair Souza. Cabo Souza. Exemplo de disciplina e companheirismo dentro da corporação. Durante o curso de formação, passara muitos e péssimos bocados. Recebia missões inglórias como engraxar todos os coturnos chulerentos de seus superiores. Esgravatou o solado de muitas botinas, retirando todo tipo de imundície. Quando lhe designaram a incumbência de faxinar os canis, Guilair sorriu por dentro. Amava os cães. Tinha por aqueles animais uma afeição que jamais sentira por pessoa alguma. Os canis que fediam a excremento não importunavam as narinas do destemido soldado, pois seu olfato tinha sido calejado pela fedentina que exalava dos bichanos de nomes importantes. Os superiores passaram a admirar o zelo, a competência, a obstinação e o silêncio de Guilair. Pela primeira vez, ele reconheceu respeito. Fizera de seu batalhão um simulacro de família. Os uniformes, os jargões, as piadas, os reclames e os interesses transformaram a Polícia Militar no convívio social de Guilair. Nos dias de folga, trancava-se em casa com seus filmes de Charles Bronson e com romances policiais lidos e relidos. Quando sua folga coincidia com o sábado, raptava um gato vira-balde e o levava para o canil da PM. Soltava dois pastores e tirava o bichinho da sacola. Num aperreio tremendo, o gato escalava a árvore mais próxima fugindo de seus algozes. Cabo Guilair munia-se de pedras e cacos de telha. O felino sofria com os projéteis até despencar. Os cães então destroçavam a presa sob os olhos satisfeitos do policial.
Durantes as operações, blindado com a carapaça da autoridade, acompanhado de seu irmão de farda, via os civis como seus inimigos, frágeis inimigos. Mandava encostar, escaneava a alma do tipo até que ele desviasse o olhar. Se estivesse no erro: documento do carro atrasado, falta de documentação, perninha de grilo, cheiro de cachaça, cara de favelado e até o medo, o homem da lei atuava com muito rigor. O cabo Guilair não se interessava em cumprir a Lei. A sua única obediência era devida à sua vontade, o “tirar vantagem”. Se não tivesse caraminguá pra perder, tinha de perder alguma coisa, a alma, a dignidade. Decifrava a o cidadão pra não meter a mão em vespeiro. Quando sacava que o sujeito era um bunda rachada, pronto. Começava a moer o espírito do coitado. Gritos, ameaças, tapa na cara, cusparada. Já mandou a mina de um molecote abusado tirar a calcinha pra verificar se não tinha droga malocada. Bateu em travestis, quebrou os destes de um traveco que levantou a voz. Travesti não era gente. Um professor teve a infelicidade de topar com Cabo Guilair no alto da madruga. Errado nos documentos e sem ter nada de valor para perder, o policial e seu comparsa da vez fizeram o mestre tirar três pneus carecas do carro só pelo prazer de castigá-lo por não estar quite com a lei de trânsito e por não ter vintém para molhar a mão de ninguém.
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Cavalo tá sempre de pé, mas também dorme. Guilair se sentia policial em tempo integral, mas era obrigado a andar desfardado, a rodar em seu carro de passeio guinchado num B.O, a passear sem a companhia de um superior ou de um comparsa. No que a gente não vê é que mora o perigo. Estava no Bar 25 horas a mando de um miliciano graúdo para recolher a parte que lhe cabia do latrofúndio, queria sua fatia da mumunha. Ouviu uma freada brusca e viu Uno que se chocava na traseira de seu automóvel. Virou o chope e foi pra fora para as satisfações. Saiu da Fiat um sujeito negro, alto, magro e com as costas largas que tinha o feitio duma pipa. Circundou os veículos para ter noção do seu prejuízo, No vidro de trás da Uno, tinha um adesivo: NEGRO GATO – CAPOEIRA E DANÇA .
“É. Tu me fodeu as lanternas e amassou meu pára-choque. Tem seguro?” Disse encarando o sujeito que não lhe desviou olhar, não se deixou ser escaneado, não revelou pedaço da alma. “Isso não teria acontecido se o seu carro não estivesse estacionado a dois metros e meio da esquina. Não tenho seguro. Cada qual que segure a sua pemba.” “Como!? Cara, tu bateu na minha traseira! Tu sabe com quem tá falando?” “Não sei... Sei que meu nome é Reinaldo, sou instrutor de dança de salão e mestre de capoeira. Tenho academia própria.” Guilair olhou ao redor. Espectadores na porta do bar. Alguns passantes brecavam para entender o ocorrido. “Tu pode ser mestre da puta que o pariu, mas no prejuízo não vou ficar! Pode desembolsando... Guilair se lembrou que estava sem farda, que era dia, que não estava de serviço e que não havia comparsa a tira-colo. “Amigo, tenho pressa. Sou trabalhador. Segura o teu prejuízo que eu corro atrás do meu.” O sujeito deu as costas. Guilair não podia atirar na perna do crioulo na frente de tantos. Decidiu agarrá-lo pelo braço. Mestre Rei não pipocou, girou e aplicou um escorão na coxa do adversário. Guilair caiu de lado e já recebeu uma cotovelada no rosto. Ia levar a mão às costas pra puxar o berro quando tomou um martelo cruzado. Sentiu o peito do pé do inimigo queimar seus cornos. Ainda zonzo, foi ajudado pelos conhecidos do boteco. Com  dificuldade, viu o Fiat uno partir. Contrariando os conselhos, o gelo que lhe traziam e os demais cuidados, entrou no carro e seguiu para casa. Mirou-se no retrovisor e viu o rosto vermelhaço, o olho roxo. A vergonha doía mais que os ferimentos. Ele que sempre esculachara na calada da noite, sem testemunhas, foi porrado e humilhado na frente de muitos. Adentrou o pequeno apê, herança da namorada adoradora dos gatos. Chorou e rememorou o cãozinho xodó, melhor amigo, salvador de sua infância. Não havia mais ninguém para lamber suas feridas.

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