segunda-feira, 11 de outubro de 2010

MAGISTRÍCIO


Andava num misto de estresse e desânimo. Aquele cotidiano massificante exigia-lhe vigor, atenção... Seria “estresse” a melhor palavra? Não sabia. Pensou nos colegas de profissão de cem anos passados. Como eles chamariam isso, afinal? Com certeza não usavam a palavra “estresse” porque era algo que ainda não existia. Havia muitos recursos que lhes impediam o aborrecimento. Entretanto, pensar em tais resoluções agora é um absurdo, daria processo e até prisão. Era difícil ser professor.
Entrou em sala. A algazarra de sempre. Daniel Dumont estava em pé sobre a mesa dançando e cantando “é sirizada é sussessagem comigo fazendo / oi oi oi”. Meia dúzia de meninas, Marluce, Vera Dias, Fernanda, Bianca e umas irmãs gêmeas de sobrenome russo batiam palmas. O restante da classe também tocava o zaralho, cada qual a seu modo.
“Bom dia, gente! Vamos sentando, para que possamos dar início à nossa aula.”
Sentavam-se, mas o alarido continuava. Orlando, um bagunceiro contumaz, que tinha notas péssimas na disciplina, berrou:
“Posso ir no banheiro, professor?”
“Não, você poderia ter ido durante o intervalo. Agora, só no próximo tempo.”
“Ihhh... Qual é, professor? Deixa aí, tô apertadão?”
“Não!”
Orlando se afastou encarando o professor de fisionomia contraída e assim passaria toda a aula.
Teve de relutar muito até conseguir fazer os alunos mais exaltados se acalmarem. Alunos que se tornavam cantores, piadistas, transeuntes, inimigos... tudo, menos estudantes. Fazendo a chamada teve de dar ainda dois ou três gritos. Levantou-se, pegou um toco de giz e começou a escrever no quadro negro. O falatório recomeçou. De costas para a turma o professor sentia-se indefeso. Tinha medo de ser alvejado por alguma bolinha de papel ou dardo venenoso. Afinal, os terrorismos eram muitos: goma de mascar na cadeira, caricaturas ofensivas no quadro, frases difamatórias nas paredes dos banheiros. Tudo isso só porque escolhera essa profissão de professor de português e insistia em ensinar. Os adolescentes já não estavam mais interessados a aprender nada daquilo que a escola apregoava. O mundo das gordas mesadas não necessitava daqueles conhecimentos; aqueles jovens reinavam em um lugar repleto de facilidades e conforto. Definitivamente, não sabiam a utilidade de estar dentro de uma sala de aula, pois diante das baladas, namorinhos, bebedeiras e bate-papos virtuais, a escola nada mais era do que mera imposição dos pais, uma condição para continuarem levando suas vidinhas fáceis e irresponsáveis.


Depois de colocar os tópicos no quadro negro, professor Azeredo ou “Azedo” – como os alunos gostavam de chamá-lo – iria dar início a uma rápida abordagem teórica. Boa parte das meninas copiava freneticamente, dando um colorido todo especial às folhas de fichário floridas com suas canetinhas perfumadas. Algumas conversavam com a colega mais próxima. Já os meninos, exceto os CDFs da turma, faziam de tudo menos silenciar e copiar o que estava no quadro. Jorge Godim fazia de sua esferográfica uma zarabatana, Daniel Brito jogava bolinhas de papel no ventilador, Cláudio Vidal batucava na carteira com uma empolgação tamanha que o fazia se esquecer de que estava em uma sala de aula.
“Cláudio, pare já com isso! Você não está em nenhum ensaio de escola de samba!”
“Qualé, ‘fessor?! Só falta um puxador porque passista já tem, ó... Mas essa daí só conseguiu sair no bloco do Enverga mas num Quebra, lá de Ramos, eh, eh!”
O garoto apontava para Lorena Quiroga, a mais saidinha da turma. A garota não pareceu se ressentir, sorriu e depois mostrou a língua para o “percursionista”


“Silêncio, gente! Silêncio! A aula de hoje é importante, nós vamos estudar os sinais de pontuação. Vamos descobrir para que servem e como usá-los ...”
A baderna continuava, Lorena agora fazia um coque com o auxílio do lápis. Cláudio mexia em alguma coisa embaixo da carteira. Havia cinco ou seis de alunos que copiavam o conteúdo do quadro. Mas, para o professor Azeredo, eles faziam aquilo por pena. Pena de um homem que estudou durante anos a fio, que participou de seminários sonolentos e tenebrosos, que leu de becharas a mattosos, que deu noites de sono em troca de horas de estudo, que tinha todo o cuidado de preparar as aulas, que nunca enrolava... Talvez fosse o talento... ou a falta dele. Ter o conhecimento e saber passá-lo à frente são coisas completamente distintas. Somente nas universidades, os professores antipáticos e sem carisma são tolerados, desde que esnobem e arrotem saberes. Do lado de cá do universo educacional brasileiro, o conhecimento pode ser de almanaque, desde que se tenha paciência e traquejo para lidar com esses humanóides.
“Fessor,  a sua careca eu chamo de calvice ou calvície?” – bradou Vidal, sentado na penúltima carteira da coluna ao lado da janela.
Azeredo levou a mão à cabeça e olhou para chão. Sentiu as gargalhadas como uma avalanche de escárnio e mal-dizer. Sentia-se um palhaço, um bufão maldito.
O professor ficou estático. A classe emudeceu a espera de uma resposta, de uma expulsão de sala, lição de moral ou coisa parecida. Azeredo recordou da época em que seus cabelos começaram a cair. O maior dos dramas de sua juventude perdida. Tentou todos os remédios, preparados, chás, mandingas e simpatias. Nada adiantou. A calvice/calvície comera-lhe os cabelos já aos vinte e um anos de idade.


 “Bem, meu caro aluno, disse o professor, quebrando o bastão de giz e se aproximando da extremidade esquerda do quadro, não se diz calvice, e sim calvície. Deveria saber disso, deveria conhecer a grafia correta dessa palavra. Mas, infelizmente, é exigir demais de sua cabecinha de camarão abduzido que transporta uma única idéia fixa de fumar maconha e encher a cara com essa beberagem chamada Gummy feita com a cachaça mais ordinária que sua mesadinha pode comprar.”
A sala ficou em polvorosa. Formou-se um coral em ihhhh. Cláudio, enrubescido olhava para os colegas como se procurasse algum contra-argumento. Soninha Alves, uma gordinha sardenta, tomou as dores:
“Que isso, professor?! Tá maluco?! Isso é maneira de tratar a gente? Nós vamos reclamar na direção porque o senhor é pago pra ensinar a gente e não pra ficar esculachando!”
“É, eu sou teu patrão! Meu pai paga teu salário!” – gritou Claúdio Vidal, batendo no peito.
Professor Azeredo sorriu:
“Ora, seu moleque insolente! Você está muito enganado! Se você pagasse meu salário, eu não precisaria vir aqui todos os dias, muito menos assumir tantas turmas. O que seu pai faz é contribuir para a receita da escola. E quanto a você dona Sônia, pode ir fazer queixa à diretora. O máximo que pode acontecer é minha demissão. Ganharei algumas milhas de indenização, montarei uma barraca de cachorro-quente em frente à escola e terei imenso prazer em contribuir com a sua dieta insalubre e para sua obesidade mórbida!”
A classe calou assustada. Soninha chorava. Cláudio encarava o professor como se quisesse matá-lo.  Orlando também chorava e soluçava. Debaixo de sua carteira formara-se uma poça. Ele realmente estava apertado.
Depois de ouvir promessas de vingança e mandar o aluno mijão para a secretaria, o professor conseguiu discorrer por quinze minutos sem se interrompido.
“Estão liberados . Podem ir embora.” – disse  o professor, enquanto apagava o quadro.


Os alunos deixaram a sala de aula mais do que depressa. Azeredo pensava em uma explicação razoável para dar à diretora. Deveria também escolher alguma outra atividade profissional já que sua carreira como professor naquela rede de ensino estava com os dias contados. Passada a raiva, reconhecia que tinha perdido o controle. Poderia ter mandado os alunos indisciplinados para a secretaria. Levariam uma advertência ou uma bronca, pelo menos, e voltariam mais calmos. Porém, já havia tomado essa atitude uma dúzia de vezes e as coordenadoras pedagógicas repetiam o mesmo discurso repleto de diminutivos e frases de efeito como “você precisa seduzir o aluno, professooooor”. E os mesmos incidentes voltariam a acontecer.
Juntou suas coisas, preparando-se para sair da sala, quando percebeu que não estava sozinho. César Duarte Ferreira, o melhor aluno da sala, aproximou-se com um livro na mão. Seu rosto coberto pela acne avançada e seu estrabismo acentuavam a feiura. Os óculos fundos de garrafa estavam remendados com fita adesiva.
“Professor.”
“Pois não, César.”
“Eu tenho uma pergunta.”
“Então, pergunte.”
“Gostaria de saber as razões linguísticas, políticas e sociais que causaram transformações na Língua Portuguesa.”
“Só isso?”
“Não. Também gostaria de saber por que não faço sucesso com as garotas.”
“Bem... a primeira pergunta é muito complexa. Não tenho como responder assim de uma vez. Quanto à segunda pergunta, você pode começar a fazer sucesso não fazendo perguntas como a primeira.”
O moleque arregalou os olhos e ajeitou os óculos, “Quê!?”
“Escuta, garoto, - em tom paternal – as garotas repudiam os CDFs , nerds, caxias e afins. Mude esse corte de cabelo, trate das espinhas e passe a interagir mais com os colegas populares que você verá os resultados. Caso contrário, você continuará fazendo alegria de seus pais apresentando um boletim impecável, mas continuará infeliz, menosprezado pelos colegas e ignorado pelas meninas.
César toupeira, como era chamado pelos colegas, deixou a sala perplexo, iria também denunciar o professor à coordenação.

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